Estado desaloja cinco instituições culturais do Crédito Real
Por contenção de despesas, três andares do prédio do Museu do Crédito Real serão ocupados por unidades regionais das secretarias estaduais de Desenvolvimento Social, da Fazenda e de Planejamento e Gestão
Trinta dias. Este é o prazo que a jornalista Rita Couto tem para desocupar a sala que o Instituto Teuto-Brasileiro William Dilly, do qual ela é presidente, ocupa no terceiro andar do prédio do Museu do Crédito Real, na esquina da Rua Halfeld com a Avenida Getúlio Vargas. Na tarde da última segunda-feira (22), Rita recebeu a correspondência assinada pelo secretário de Estado de Cultura e Turismo (Secult), Marcelo Landi Matte, com o prazo expresso e a solicitação para que apresente, até o próximo dia 22, “os comprovantes dos últimos seis meses dos pagamentos referentes às despesas de água, energia elétrica, telefonia e fornecimento de internet, bem como o pagamento das taxas e tarifas relacionados ao imóvel”. Com um acervo que preserva mais de 160 anos da narrativa da imigração alemã em Juiz de Fora, reunindo documentos desde antes da chegada dos alemães na cidade, fotografias e objetos como louças e malas, a instituição não tem para onde ir. “Para onde vamos? Como vamos atender as pessoas? É como se nossa história não tivesse valor. Isso nos preocupa porque a cidade irá perder muito”, lamenta Rita, autora dos livros “Santa: Uma capela tirolesa na colônia alemã de Juiz de Fora” e “São Pedro: O coração da colônia alemã de Juiz de Fora”, ambos resultados de pesquisas realizadas no vasto arquivo do instituto.
Construído na primeira metade do século XX, o prédio assinado pelo engenheiro-arquiteto mineiro Luiz Signorelli, profissional renomado em Belo Horizonte, foi edificado pela Construtora Pantaleone Arcuri e serviu como sede do pioneiro Banco de Crédito Real de Minas Gerais, que funcionou por 109 anos e, em 1998, foi vendido para o Bradesco. Tombado pelo município em 1992, o imóvel também ganhou proteção do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais em 2005. Propriedade do Governo de Minas Gerais, o prédio de cinco andares sedia, no primeiro pavimento, o Museu de Crédito Real, com uma das mais completas e curiosas histórias sobre a economia brasileira no último século. No quinto e último andar, está o Instituto Itamar Franco, que preserva a memória do político juiz-forano. Já nos pavimentos intermediários ficam cinco instituições distintas, que também receberam a mesma notificação destinada ao Instituto Teuto-Brasileiro William Dilly. “O prédio do museu possui, ainda, dois auditórios, que são disponibilizados para diversas outas instituições, como corais, grupos de teatros e musicais. Esse espaço é emprestado gratuitamente. Ele é como um grande centro cultural”, avalia Rita, que em meados de junho recebeu uma correspondência apontando a realização de um estudo do Governo de Minas Gerais para outra ocupação do lugar e, por consequência, da reversão do termo de cessão do espaço firmado com as cinco instituições.
Coletivamente as entidades responderam apresentando o trabalho desenvolvido e convidando para que a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo visitasse o local. “Ficamos surpresos porque tínhamos a esperança de que a nossa correspondência encontrasse eco e que o valor de nossas instituições fosse reconhecido. Também nos preocupamos com os outros grupos que ocupavam os auditórios. Quais serão nossos passos para que as instituições não morram?”, indaga Rita. “Procuramos o diálogo”, destaca ela, que ao lado de Wanderley Luiz de Oliveira, presidente da Associação de Cultura Luso-Brasileira, outra afetada pela decisão, reuniu-se na tarde de terça (23) com um representante da Secult, em visita a Juiz de Fora, para tratar o assunto. “Reconhecemos que o Estado esteja passando por um momento complicado. Como mineiros, também queremos ajudar. Mas com essa atitude, o Estado ajuda a acabar com a cultura”, critica Rita, calculando que a desocupação dos três pavimentos do prédio pode afetar outras 40 instituições que utilizam o espaço para realizar suas atividades. “Não recebemos um único centavo. Água e luz, nós pagamos. E a manutenção dos elevadores é rateada por nós. Isso me parece algo muito favorável, porque é a Secretaria Estadual de Cultura tendo o nome ligado a essas instituições sem fazer qualquer investimento”, pontua a gestora.
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Prédio será ocupado por secretarias estaduais
Em nota oficial, a Secretaria de Cultura pontua que o atual cenário exige redução das despesas de custeio, destinando a utilização dos prédios públicos pelas próprias secretarias. “Isso evita o pagamento de altos aluguéis e alivia a difícil situação fiscal presente hoje no Estado. Por isso, a Secult está remanejando parte do edifício onde atualmente funciona o Museu do Crédito Real para abrigar essas unidades regionais prestadoras de serviço à população de Juiz de Fora, como a Secretaria de Estado de Fazenda, a Secretaria de Planejamento e Gestão, Secretaria de Desenvolvimento Social”, explica o comunicado, que também se compromete com o principal memorial do lugar. “Ao mesmo tempo, providências para otimização do aproveitamento do acervo do museu estão sendo tomadas. É preciso encontrar recursos para atualizá-lo, uma vez que seu projeto expográfico data de 2000. A Secult deseja aumentar a visitação e o cuidado com o acervo e vai trabalhar para isso”, acrescenta a nota.
Questionadas sobre a realocação das unidades regionais, as secretarias de Estado de Fazenda, de Planejamento e Gestão e de Trabalho e Desenvolvimento Social confirmaram, também em nota, a mudança para o prédio do Museu do Crédito Real. Uma vez que as superintendências ocupam, atualmente, em Juiz de Fora, imóveis alugados, a mudança está no âmbito de diretrizes governamentais de redução de despesas face à situação fiscal do Estado de Minas Gerais. Os núcleos regionais do Estado localizam-se em diferentes pontos da região central. Ao passo que a Superintendência Regional da Fazenda de Juiz de Fora situa-se na Rua Halfeld 414, a Superintendência Central de Perícia Médica e Saúde Ocupacional da Secretaria de Planejamento e Gestão está na Rua Marechal Floriano Peixoto 550, e a Diretoria Regional de Trabalho e Desenvolvimento Social, na Rua Marechal Deodoro 796.
Tanto a Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social quanto a Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) destacam o alinhamento às diretrizes governamentais. “A Superintendência Central de Perícia Médica e Saúde Ocupacional da Seplag está alinhando, junto à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo, a mudança do Núcleo Regional de Juiz de Fora para o Prédio Crédito Real”, observa o comunicado oficial. A Secretaria de Estado de Fazenda, porém, ressalta a manutenção da Administração Fazendária e da Delegacia Fiscal no endereço da Rua Halfeld, embora o gabinete da superintendência seja transferido para o prédio do Museu do Crédito Real. “Vale salientar que, para preservar a referência de local para os contribuintes do município, tanto a Administração Fazendária (AF) quanto a Delegacia Fiscal (DF), responsáveis pelo atendimento direto ao público, permanecerão no endereço atual (Rua Halfeld, 414), visto que os andares ocupados por estes órgãos também pertencem ao Estado de Minas Gerais.” Entretanto, mesmo questionadas, as pastas ainda não mostraram os números referentes à economia a ser realizada com a realocação dos imóveis.
Instituições reivindicam ampliação do prazo
Sediada, há 20 anos, no prédio do Museu do Crédito Real, a Associação dos Funcionários Aposentados do Banco de Crédito Real de Minas Gerais ocupa, no quarto andar do edifício, quatro cômodos: duas salas, mais um banheiro e uma cozinha. Embora o Banco de Crédito Real esteja extinto, a entidade funciona diariamente, entre 8h e 18h, atendendo os associados aposentados. Na época de funcionamento da instituição financeira, os bancários trabalhavam no mesmo edifício, cujo valor simbólico, para eles, é expressivo. Nilton de Barros Abreu, de 84 anos, presidente da associação, soma mais de seis décadas no edifício, onde aposentados ainda se reúnem para atividades diárias. Sem fins lucrativos, a entidade presta serviços de assistência social. De acordo com Nilton, a associação pretende judicializar a questão. “Disse, durante a reunião, que, em 30 dias, não tenho condições de sair. Pretendemos entrar (na Justiça) com um mandado de segurança preventivo para manter a associação no prédio. Não vou sair fácil daqui. Falei que terão que me despejar. Onde vou colocar esse monte de móveis que temos aqui? Não tenho onde colocá-los! Não temos outro local para ir. Isso é nosso! Isso é dos funcionários do Crédito Real. Não é qualquer um que vai fazer imposições.”
“Estamos no prédio desde a época em que Itamar Franco era governador (entre 1999 e 2003). Foi ele quem nos arrumou este espaço. Mas eu, por exemplo, somando o tempo de associação e de Crédito Real, tenho uns 70 anos no edifício. Há outros também. Temos associados com 90 anos de idade, sendo 40 de trabalho no banco”, explica Nilton. Embora tenha enumerado imóveis de propriedade do Estado desocupados em Juiz de Fora, Nilton garantiu que nada fora oferecido. “Há o antigo prédio do Psiu (Rua Halfeld 781) e onde foi a Delegacia de Ensino, no Bairro Mariano Procópio. Se o Estado quiser dar, eu aceito. O Instituto Cândido Tostes também tem três salas enormes desocupadas. O Estado não ofereceu nada.”
Superintendente da Agência de Desenvolvimento de Juiz de Fora e Região (ADJFR), outra entidade a receber a notificação de desocupação do prédio, José Geraldo Neto de Faria reivindica outro tratamento para a instituição que desde 2004 ocupa duas salas do prédio histórico. “No mínimo, o que deve ser questionado é o prazo. Nem quando se tem um imóvel alugado é possível fazer isso (sair em um mês). A posição da Agência, acredito eu, não será de radicalismo, mas de entendimento, verificando a real necessidade do uso desse espaço, que é público e tombado”, aponta o representante da organização não governamental que reúne 120 associados na cidade e região, entre iniciativas do setor privado, entidades empresariais, sindicais e da sociedade civil. “Quando a agência foi para lá, foi uma cordialidade do então governador Itamar Franco, que tinha uma visão democrática, de homem público fora do comum. Ele enxergava as necessidades reais da sociedade”, comenta Faria, ainda sem saber o futuro da ADJFR.
Wanderley Luiz de Oliveira também não sabe onde proteger os mais de 10 mil livros reunidos pela Associação de Cultura Luso-Brasileira, da qual é presidente há mais de 15 anos. “Temos muitos livros encaixotados. O espaço já estava ficando pequeno. A associação não tem dinheiro para nada, tudo sai do meu bolso. Estamos muito chocados com essa situação”, diz ele, entre o desânimo e o estresse. “Dormi pouco essa noite. Estamos inconformados. Trabalho por amor e contribuímos com a cultura. Chegar a essa situação é muito triste”, pontua o bancário aposentado. Mais antiga instituição a ocupar o prédio, a entidade fundada em 1955 pela professora e escritora Cleonice Rainho (Wanderley é seu biógrafo) ocupa uma pequena sala abarrotada de estantes apinhadas de livros, mas ganha outra dimensão nas parcerias que faz com iniciativas como o Slam Poético da Ágora, realizado pela Confraria dos Poetas, que leva dezenas de jovens ao prédio do Museu de Crédito Real.
“A maioria dessas instituições é pobre. Nossa instituição não tem fins lucrativos. Como fazer tudo sem dinheiro? Nossa esperança é sensibilizar o Governo para olhar diferentemente para o prédio do museu”, comenta Cláudio Luiz da Silva, bibliotecário do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, que com mais de 60 anos de história se vê na condição de desalojado, sem lugar para proteger seus mais de três mil livros. Também integram o espaço da instituição uma área com documentos de fontes primárias que ajudam a contar a história de Juiz de Fora, além de um auditório com 60 lugares que recebe palestras mensais das áreas de história e geografia. “Já estávamos com a agenda anual de palestras toda montada, nossa revista já estava pronta. E estamos recolhendo textos para uma nova revista. É todo um trabalho que vai sendo desmontado. É um trabalho cultural que há 63 anos vem sendo feito. Tem uma importância capital na história local”, defende Silva.
Vereador cobra reversão de decisão
Procurado por representantes legais das instituições parceiras do Museu do Crédito Real, o vereador Juraci Scheffer (PT) protocolou, na Câmara Municipal, em 12 de julho, representação contrária à utilização do prédio do Museu do Crédito Real para atividades outras que não culturais. No documento, o parlamentar defende a manutenção do edifício enquanto “patrimônio público cultural, histórico e social” de Juiz de Fora, bem como requer a sua “doação integral ao Município de Juiz de Fora para sua gerência, administração, manutenção e conservação em prol da comunidade juiz-forana em vista do interesse público e do bem comum”. Conforme Juraci, a realocação das unidades regionais das secretarias de Estado deveria ter sido discutida pelo Governo estadual junto à Prefeitura e à Câmara Municipal a fim de encontrar soluções para as instituições sediadas no edifício.
“A mudança foi conduzida de maneira absurda pelo Estado. A saída das instituições do prédio não era a melhor solução, pois o Estado tem outros imóveis desocupados em Juiz de Fora, como o prédio da antiga Minas Caixa, localizado na Rua Halfeld, em frente ao Banco do Brasil, ou, então, a antiga Superintendência Regional de Ensino, no Mariano Procópio. O Governo não quer transferir as instituições para estes edifícios porque quer vendê-los”, ressalta o vereador. De acordo com Juraci, o ex-prefeito Bruno Siqueira (MDB) e o Governo Fernando Pimentel (PT) iniciaram negociações para a doação do imóvel ao Município de Juiz de Fora. “As negociações não caminharam depois da renúncia do ex-prefeito Bruno Siqueira e em razão das dificuldades financeiras da cidade.”
Em 9 de julho, a Câmara Municipal sediou audiência pública em defesa e proteção do patrimônio histórico e cultural dos museus, das bibliotecas, dos teatros, anfiteatros e dos centros culturais do Município, como também preservação da produção artístico-cultural da cidade de Juiz de Fora. Apesar do curto prazo dado pelo Governo estadual para a desocupação dos andares do edifício, após o recesso parlamentar, conforme Juraci, o agendamento de nova audiência, específica à situação do Museu Crédito Real, será pleiteado.