Um alento: cantor e pianista Rafa Castro lança autoral “Teletransportar”
Impulso para mergulhar: Quarto trabalho do artista de São João Nepomuceno radicado em São Paulo traz mensagem de alento para os tempos difíceis: “Tudo vai passar enquanto eu penso em teletransportar”
Um disco leva tempo. Há o tempo da composição, do arranjo, da produção, da gravação, da edição, da divulgação e muitas outras etapas. Por mais que fale ao hoje foi feito num ontem. “Teletransportar”, no entanto, parece ter sido todo feito agora. O diálogo estabelecido pelo novo trabalho do cantor, compositor e pianista Rafa Castro com o presente é profundo e intenso. Lançado nas plataformas de streaming nesta sexta, 10, o álbum parece todo cantado para os dias frios de isolamento social. “Vai nascer a lua cheia, serena luz do sol, meu coração procura força pra recomeçar”, canta em “Depois da chuva”, de Rafa e Luiz Gabriel Lopes, faixa na qual convida a amada para assistir a chuva cair e passar. Toda chuva é passageira, faz lembrar “Teletransportar”. O que vem depois, então? Novos erros, acertos e riscos, parece responder o trabalho. “Arriscar mais, tendo sempre o que dizer”, canta em “Cacos de vitral”, feita em parceria com Thomaz Panza.
Com shows agendados antes da chegada do coronavírus no Brasil e cancelados quando o vírus passou a se espalhar pelo país, Rafa cogitou adiar o lançamento do álbum, o quarto de sua carreira. “É um disco que está ganhando proporções e espaços interessantes. Agora não tem muito o que fazer. Eu estava em dúvida se adiaria, mas fiquei pensando muito no papel que a música tem na minha vida, das alegrias que a música me deu. Por isso, resolvi manter. Queria fazer um bem com aquilo que acho que faço de melhor. Esse disco é um questionamento e também um alento, um farol”, aponta o artista que assina todas as músicas que muito dizem de seu próprio percurso.
“Uma coisa fundamental para eu fazer esse disco, um mote, a inspiração central é que há dois anos e meio eu e minha companheira resolvemos que faríamos uma série de viagens para dentro do país, com uma conexão forte com o Brasil profundo, que muitas vezes é esquecido. A partir dessas viagens, comecei a ter uma vivência muito forte de coisas que estavam dentro de mim e eu não sabia”, conta. A primeira viagem foi para a Ilha do Marajó, no Pará, com sua floresta primária de árvores robustas, experiência que rendeu-lhe a composição de “Marajó”, assinada com a companheira Lorena Dini. “Esse contato com a natureza me fez resgatar uma religiosidade, um entendimento de meu lugar no mundo e na natureza. Isso tudo foi querendo transbordar.”
A última viagem antes de concluir o disco foi para a Amazônia. “No meio dessa viagem, fomos para o Lago Mamori, a três horas de Manaus, e ficamos numa comunidade ribeirinha. Num dos dias, conversando com uma pessoa da comunidade, pedi para que levasse a gente até uma floresta mais densa. Nessa caminhada fui percebendo que as árvores eram muito grandes e a mata era muito densa. Eu já tinha vivido no Pará uma situação parecida, com as árvores muito frondosas, mas na Amazônia elas eram muito jovens. Então perguntei para a pessoa que nos levava o motivo daquilo”, recorda-se Rafa, que ouviu como resposta que há cinco décadas o lugar era um pasto por conta dos desmatamentos provocados no período que a história nomeou como Ciclo da Borracha. “Perguntei, então, se era uma região reflorestada e ele me disse que não. Que aquela parte se reergueu sozinha.”
Sobre se reerguer naturalmente
Trabalho de maior frescor de Rafa Castro, “Teletransportar” aponta para a força motriz dos renascimentos. Haveria mensagem mais urgente para o momento que o país e o mundo enfrentam? “‘Teletranportar’ tem dois sentidos fortes: o primeiro é que no meio dos avanços tecnológicos que temos vivido, a que estamos inseridos, o teletransporte era para ser algo que viria na ‘cesta básica’, não o teletransporte em si, mas as tecnologias em geral. Mas ainda temos que discutir noções básicas de humanidade, de necessidades básicas de sobrevivência em comunidade. É uma dimensão poética que está sendo perdida. O outro significado é esse de sumir de alguma maneira desse olho do furacão em que vivemos, querendo sublimar, querendo estar num lugar diferente desse do real”, explica o artista que se manifesta estética e politicamente num trabalho que tem o céu e o mar como elementos imagéticos de referência.
“Como eu tinha muita vontade de dizer coisas que estavam dentro de mim e que eram muito latentes em meu coração, não faria sentido se eu não colocasse para fora de uma maneira poética. Nos meus outros discos, eu tinha parceiros recorrentes, grandes amigos e poetas, mas nesse as letras são majoritariamente minhas, o jeito que escrevo é muito honesto comigo mesmo e com o que sou de mais profundo”, pontua Rafa. “Fazer arte para mim sempre esteve muito vinculado às minhas experiências pessoais e às minhas transformações como ser humano, e também de uma vontade de dizer para o mundo o que eu estava sentido. A música sempre teve dois papéis fundamentais para mim: de ressignificar o cotidiano, olhando para a ordem do dia de uma maneira diferente, e de me reconcertar com um possível divino.”
Flertando com o passado e o presente da música brasileira, Rafa Castro cria pontes, em “Teletransportar”. “Musicalmente sempre gostei muito de contar histórias através das melodias. Com minha experiência em trilha sonora, sempre fui um contador de história através da música. As sonoridades brasileiras vieram muito fortes, principalmente as de um Brasil dos anos 1970”, reconhece, ele, facilmente identificado com os artistas de sua geração. “Essa galera está bebendo das mesmas fontes e acaba que nos encontramos no caminho, no fazer. Não tem como não estar conectado com as coisas que estão sendo feitas hoje. Sou muito ligado na música que está sendo produzida. A gente flerta tanto por ter algumas das referências comuns, quanto por que estamos todos nos ouvindo”, diz.
Cercado pela megalópole
Nascido em São João Nepomuceno, Rafa Castro mudou-se aos 12 para Juiz de Fora, de onde saiu há seis anos para viver em São Paulo. “Vim para cá para fazer os shows de lançamento do CD e DVD ‘Teias’, com o Túlio Mourão. Tive a sorte de tocar com essa referência do piano brasileiro. Vim também para produzir o ‘Fronteira’ que é essencial na minha trajetória”, diz ele, referindo-se ao último trabalho, no qual faz a transição do instrumental para o canto. Gestada em Minas, seu terceiro álbum refletia sobre a mudança para São Paulo. “Falava da fronteira e da não-fronteira, desse lugar que é delimitado e não deveria ser, que é um manancial de fusão de culturas”, observa ele, que no novo trabalho reflete a megalópole, suas tensões e demandas. “É um disco mais dentro da cidade grande, das vivências do caos, dos dois braços de São Paulo, que é a cidade da cobrança e da magnitude da loucura, mas também um lugar completamente rico e aberta a novos horizontes e conexões.”
Juiz de Fora nunca está fora de sua rota. A última vez em que esteve na cidade foi no final de 2019, para um show no Museu de Arte Murilo Mendes. “Gostaria de ser mais próximo. Juiz de Fora foi essencial na minha formação de vida. A arte daí fecundou em mim muitas coisas que entendo e colho hoje”, reconhece o músico de 31 anos que encerra o novo álbum com a autoral “Cicatriz”, cantada a capella. Rafa Castro deixa de lado o piano com o qual se tornou conhecido e solta a voz. Em seguida volta ao instrumento do qual não se distancia. Ele arrisca mais, “tendo sempre o que dizer”.