Mc XuxĂș transborda representatividade em seu disco Senzala’
Novo trabalho tem participação de artistas travestis negras, rappers da periferia e mĂșsicos locais
“Eu voltei e voltarei quantas vezes preciso for/ Pra calar a boca de quem me subestimou/ CĂȘ duvidou Ă© agora eu tĂŽ aqui/ O mundo girou e chegou a vez das travestis”. Nua, crua, sem papas na lĂngua, Mc XuxĂș refaz em versos seus prĂłprios passos no longo, incerto e ĂĄrduo caminho que percorreu atĂ© o lançamento de seu primeirĂssimo disco de estĂșdio, “Senzala”, lançado na Ășltima semana em todas as plataformas digitais (escolha a sua e faça-se o favor de ouvir).
“Tentei lei de incentivo, nĂŁo fui aprovada. Tentei financiamento coletivo, nĂŁo consegui nem metade do valor que pedi. Esse disco saiu na raça, como tudo que fiz nessa vida. Cheguei a pensar que nĂŁo ia conseguir, mas tive pessoas maravilhosas me dando força quando estava fraca”, diz a artista, que destaca o apoio de ninguĂ©m menos que a deusa negra da MPB Elza Soares, que disse, em seu Twitter: “Todo ĂĄlbum Ă© uma obra. Ser artista, negra e trans no Brasil nĂŁo Ă© pra qualquer uma. Conheçam MC Xuxu”. “Quando uma mulher daquelas, uma artista daquelas fala sobre a importĂąncia do meu trabalho, isso me deu fortaleceu demais para continuar, foi como se tivesse recebido o apoio de vĂĄrios artistas ali”, diz XuxĂș, que esteve na redação da Tribuna nesta sexta-feira.
Apesar de representar o estilo musical que consagrou XuxĂș, o ĂĄlbum vai alĂ©m do funk e dialoga com hip-hop, rap, tambores mineiros e batidas eletrĂŽnicas, em uma seleção de faixas cuidadosamente produzidas. “No meu show isso sempre aconteceu, sou muito eclĂ©tica e quis que meu primeiro disco tivesse essa cara e trouxesse diversidade tambĂ©m nos ritmos.”
‘Tu quer treta? EntĂŁo vai ter treta’
De fato, o ĂĄlbum Ă© um espelho de XuxĂș como artista, como militante e como “travesti preta da favela”, como sempre faz questĂŁo de frisar. Mas tem uma pegada de humor tambĂ©m, como nas divertidĂssimas “Missa” e “Kit Assume”, que tĂȘm a participação das travestis negras Danny Bong e Mulher Pepita, respectivamente. “As pessoas tendem a ver a militante como sĂ©ria. E nossa vida Ă© de muita luta, sim, mas viver Ă© lutar, cantar Ă© lutar, andar de mĂŁos dadas nas ruas Ă© lutar. Todas as letras do disco sĂŁo a nossa vivĂȘncia em sua totalidade”, avalia a cantora.
Tal leveza que permeia algumas das mĂșsicas nĂŁo amortiza a porrada de muitas letras, como a faixa-tĂtulo “Senzala”, em que XuxĂș rasga o verbo para falar de uma vida inteira de preconceito, muitas portas fechadas, mas, sobretudo, resistĂȘncia. (Quase nunca sou bem-vinda, onde eu chego causo pane/ Mas eu sei que eu sou linda e quero mais Ă© que se danem/ Mulher de peito pau e seu conceito nĂŁo me abala/ Eu sou favela, o brilho da senzala/ Olha pra ela: o brilho da senzala).
“As pessoas precisam saber que nĂłs minorias, travestis, pretas, faveladas estamos aprendendo a entender nosso lugar na sociedade. A gente cresce aprendendo muita coisa errada, a julgar o prĂłximo, excluir as pessoas, e eu canto contra isso tudo. Ă muita hipocrisia, por exemplo, um cara falar que ‘travesti Ă© feia’. Feio Ă© trair a esposa com travesti e ainda pagar por isso. Jogo as verdades na cara mesmo, no disco inteiro.”
‘O clĂŁ tĂĄ formado’
AlĂ©m do flerte com diversos gĂȘneros musicais, “Senzala” traz vĂĄrias parcerias com artistas do cenĂĄrio nacional, como as jĂĄ citadas Danny Bong e Mulher Pepita, os tambores mineiros do Ingoma, os rappers RT Mallone e Jovem Saga e o instrumentista Caetano Brasil. “Ă muito importante ter pessoas ao nosso lado, e eu quis que essas parcerias trouxessem representatividade, de vĂĄrias maneiras. A Danny Bong e a Pepita sĂŁo negras e travestis como eu, sabem o que Ă© viver a vida que eu levo e lutar as lutas que eu luto. Mas quis trazer gente da cidade tambĂ©m. O Caetano Ă© um dos melhores mĂșsicos que eu conheci, Ă© gay, acredita no meu trabalho e Ă© da cidade. O Ingoma me abraçou e valorizou o que faço e tambĂ©m a cultura da periferia. O rap me trata como uma rainha. Todas essas pessoas, vindas de senzalas diferentes, se juntaram a mim para fazer a minha ‘Senzala’, numa voz sĂł, e colocar a minha existĂȘncia, e a de tantas pessoas como eu, na rua”, diz a cantora.
Para a galera do rap, estar no ĂĄlbum de XuxĂș ilustra uma aliança importante dos artistas da periferia local. “A mĂșsica que gravamos (“Escoldada”) Ă© um salve para as mulheres da periferia, Ă© parte da realidade que a gente vive no dia a dia, e o resultado Ă© uma amostra que contradiz o que o senso comum espera da periferia, um trabalho sempre inferior. Sentimos boa parte das mesmas coisas estando na periferia, claro que com vivĂȘncias diferentes, mas temos empatia um pelo outro. E, quando unimos forças, acabamos criando uma rede muito sĂłlida”, avalia RT Mallone. “Todos nĂłs da periferia sempre trabalhamos de forma muito independente, metendo as caras e, quando temos oportunidade de nos unirmos, conseguimos um alcance que jamais conseguirĂamos sĂłs”, acrescenta Jovem Saga.
O plano de XuxĂș agora Ă© investir na divulgação do ĂĄlbum, que tambĂ©m terĂĄ cĂłpias fĂsicas, “para resgatar aquele hĂĄbito de a gente colocar nossos CDs preferidos na estante”, como diz a estrela, que tambĂ©m lançarĂĄ clipes das faixas. Talvez sem que a artista tenha a total dimensĂŁo do poder dos prĂłprios versos, o “Senzala” de XuxĂș ilustra exatamente o que canta a letra de “Liberdade”: “O mundo girou e chegou a vez das travestis”.