Solidariedade para combater o frio
Rua Floriano Peixoto, Centro de Juiz de Fora. Debaixo de uma marquise, uma idosa tentava se abrigar na segunda noite mais fria na cidade este ano, registrada na última quarta-feira, dia 24. Deitada direto na calçada de pedras portuguesas, molhada com a própria urina e vestindo uma fina calça de nylon, a mulher quase congelava. Os termômetros oficiais do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) marcavam 11,7 graus em Juiz de Fora. Com o vento, a sensação térmica era bem menor: 6 graus. Por sorte, a idosa recebeu auxílio de um empresário de 44 anos, que naquela noite saiu de casa para distribuir cobertores e chocolate quente a pessoas em situação de rua. Assim como a atitude dele, outras iniciativas individuais ou de grupos sem ligação a entidades assistenciais têm ganhado as ruas. Nas saídas à noite, essas pessoas doam agasalhos, roupas e cobertores, distribuem alimentos ou simplesmente dedicam parte do tempo para ouvir as histórias de quem a vida não tem sido tão generosa.
“Ela estava totalmente congelada, vestindo só uma calça de nylon fina, sem cobertor, deitada direto no chão. Tinha urinado na própria roupa. Coloquei um cobertor para forrar o chão e outro para cobri-la. Depois que ela tomou um chocolate quente, e eu e meus dois amigos oramos com ela, dormiu na hora”, diz o empresário Rodrigo Ubaldo Pereira. Desde a semana passada, ele dedica algumas noites a ajudar quem não tem onde morar. Alguns até têm uma casa, mas a estrutura familiar problemática, muitas vezes, inviabiliza o convívio no lar, e os abrigos públicos não se tornam tão atrativos. Seja qual for o motivo de estarem nas ruas, são pessoas cuja pele sente o rigor do frio, o estômago reclama da fome e o coração clama por um afeto. E, felizmente, há outras dispostas a auxiliar.
Grupos no Facebook têm ajudado a divulgar essas ações e a unir pessoas desconhecidas. O empresário, por exemplo, criou o grupo “SOS moradores de rua“, no qual pede as doações. “Pela quantidade de pessoas que achei nas ruas em tão pouco tempo, acho necessário que esse trabalho continue.” Rodrigo não tem como fazer sopa. Faz sua parte distribuindo cobertores que ele mesmo comprou, roupas que não usa mais, além de chocolate quente. Mas toda ajuda é bem-vinda. “Se as pessoas puderem doar cobertor e agasalho, ajudaria muito. Eu mesmo compro o leite e o chocolate. Biscoito é uma boa doação também”, sugere.
Voluntária não quer aplausos, mas apoio
Aos 26 anos, a advogada Cleidiana Ferreira conta com as amigas para ajudar a quem precisa. Há cerca de dois meses, suas noites de quinta-feira têm sido dedicadas ao próximo. Pontualmente, às 19h40, ela sai de sua casa no Calçadão da Rua Halfeld e percorre as ruas do Centro em busca de quem precisa de um agasalho, um chocolate quente e pão com manteiga que ela mesmo prepara. Há dias em que o trabalho é prejudicado por falta de voluntários. Nem por isso ela se deixa abater. Sai sozinha. “As pessoas sempre falam ‘parabéns’, ‘sua atitude é nobre’. Mas eu preferia mil vezes que elas trocassem essas palavras por ‘eu vou te ajudar um dia ou dois’. Não faço isso por aplausos.”
Natural de Santos Dumont, Cléo, como é conhecida, sempre se compadeceu de quem vive na rua, a quem trata como “heróis”. Mas foi após ler um livro (“O futuro da humanidade”, de Augusto Cury) que ela ampliou seu desejo de ajudar. “Eu resolvi, em um dia de frio, fazer um caldo. Comprei dez marmitex, embalei o caldo bem quentinho e fui às ruas procurar pelos heróis. Aos poucos, encontrava com cada um e tive um diálogo. Eles contaram porque foram parar nas ruas, como se sentiam, seus desejos e ficaram felizes com o caldo quente. Foi muito gratificante ajudar.” Uma página no Facebook (Faça uma pessoa sorrir – doações) e um grupo no WhatsApp foram criados para facilitar o trabalho e mobilizar a maior quantidade de pessoas.
Ruas cheias de história
Desde que Cléo resolveu arregaçar as mangas, sua história se cruza a outras dezenas, como a do sr. Aragão, que morava dentro de uma caixa de geladeira, e a do Marcus, que veio para Juiz de Fora trazido por uma empresa que o prometeu trabalho como servente de pedreiro, mas que no fim não o empregou. “Encontrei também o Werlenton, 24 anos, morador de rua, furtou para comer, mas não fugiu. Estava na rua e me pediu três coisas: uma Bíblia, um travesseiro e uma calça, pois ele queria saber como estava seu processo, mas somente com calça podia entrar no fórum.”
No dia em que a Tribuna acompanhou Cléo e a amiga Raquel em uma das saídas à noite, a Praça da Estação era um dos pontos da região Central onde mais havia pessoas em situação de rua. A temperatura era de 20 graus, conforme o Inmet. A sensação térmica, um pouco abaixo: 16. Em um dos cantos, Messias e Amilton, pai e filho, conversavam, ao lado de um colchão estirado no chão. Messias, que está em situação de rua na região da divisa de Minas com o Rio de Janeiro, estava em Juiz de Fora apenas de passagem para visitar o filho, que também vive nas ruas por aqui.
A soleira da entrada de um prédio antigo era o travesseiro no qual Amilton iria dormir naquela noite. Sorte dele que Cléo carregava um travesseiro doado por uma amiga. Amilton é ex-presidiário. Em 2007, matou a tiros um primo que havia lhe agredido. Usava drogas, mas garante que hoje está libertado. “Tomo carbamazepina, diazepam e antidepressivo. Fiquei assim depois que meu filho de 9 anos morreu. Eu era viúvo, cuidava dele sozinho. Ele não largava de mim. Ele pegou pneumonia, mas eu não sabia que ele estava com essa doença. Depois disso deu um distúrbio mental em mim. Até hoje sofro por causa disso.”
Redes sociais ajudam na mobilização
Foi no grupo “Mercado negro JF”, destinado à compra e venda de produtos pelo Facebook, que sete juiz-foranos que nunca haviam se encontrado se conheceram. Em abril – após uma postagem de uma usuária interessada em ajudar projetos de assistência a pessoas em situação de rua -, eles decidiram criar o próprio projeto, batizado de “Elos do bem“. Desde então, o grupo se reúne toda quarta-feira, quando prepara uma sopa ou caldo e sai às ruas para a distribuição do alimento, além de suco e vestuários que eventualmente arrecadam. Além dos sete administradores, o grupo no WhatsApp reúne cerca de 80 voluntários que ajudam nas doações e na distribuição dos materiais.
“No primeiro dia em que nos reunimos, uma das primeiras coisas que ficaram decididas é que não teríamos vínculo com religião ou política. São pessoas de diferentes idades, profissões e lugares da cidade que se reúnem em prol do bem”, explica a estudante de medicina veterinária Amanda Borges, 19 anos, uma das administradoras do “Elos do bem”. A principal demanda do grupo hoje é conseguir uma cozinha onde os alimentos possam ser estocados e preparados toda quarta-feira.
No dia em que a Tribuna acompanhou uma saída dos voluntários, um grupo que dormia em uma marquise ao lado do prédio da Prefeitura reclamava que roupas, calçados e cobertores haviam sido queimados. A presença dos moradores de rua realmente incomoda muita gente. Não são raros os relatos de insultos, enxotamentos e até agressões.
Poder Público
Entre as iniciativas oficiais de assistência às pessoas em situação de rua, a Secretaria de Desenvolvimento Social e a Amac desenvolvem projetos como o Centro Pop, unidade que oferece refeições, acompanhamento psicossocial e oficinas artísticas, entre outras atividades, com capacidade de atender a 120 pessoas. A Casa da Cidadania realiza o acolhimento institucional de cidadãos que também se encontram em situação de rua, em vivência de alto risco e vulnerabilidade social. A capacidade de atendimento é de 70 usuários, sendo 55 leitos masculinos e 15 femininos. Já no Núcleo Cidadão de Rua, os atendidos podem pernoitar, recebem alimentação e cuidados com higiene. O núcleo possui 134 leitos masculinos e 16 femininos. O Serviço de Abordagem Social pode ser solicitado por qualquer pessoa, pelo telefone 3690-7770.
Como ajudar?
Elos do bem
Formado por sete pessoas que se conheceram pela internet, é aberto a quem deseja se tornar voluntário. Sai toda quinta-feira, por volta das 20h, de Santa Terezinha. Recebe doação de alimentos, suco, cobertores, roupas, calçados e capa de chuva, além de marmitex e copos. O grupo precisa de uma cozinha fixa onde os caldos possam ser preparados.
Contato: facebook.com/ElosdoBemJF
Faça uma pessoa sorrir doações
Iniciativa da advogada Cleidiana Ferreira, que conta com a doação de amigas e de integrantes do grupo criado no Facebook. Costuma sair quarta-feira, às 19h40, do Calçadão da Halfeld. Recebe doação de cobertores, travesseiros, meias, roupas, calçados, leite, chocolate quente e pão. O grupo precisa de voluntários durante a entrega.
Contato: facebook.com/groups/572107172931365
SOS moradores de rua
Grupo criado pelo empresário Rodrigo Ubaldo Pereira, que realiza as entregas por conta própria. Não tem dia fixo para sair, pois depende dos materiais que consegue arrecadar. A iniciativa conta com a doação de agasalhos, cobertores e calçados. Biscoitos também são bem-vindos.
Contato: facebook.com/groups/851136718309602