A difĂcil convivĂȘncia com quem mora ao lado
O dicionĂĄrio Houaiss define o verbo “conviver” por ter relaçÔes cordiais, adaptar-se ou habituar-se Ă s condiçÔes do ambiente e compartilhar do mesmo espaço. Quem vive em sociedade, sobretudo em condomĂnios, sabe muito bem que nĂŁo Ă© tĂŁo fĂĄcil manter uma relação sadia com os demais vizinhos quando existem problemas que afetam a convivĂȘncia entre eles. As importunaçÔes sĂŁo muitas e vĂŁo desde o desrespeito Ă s regras de segurança e Ă mĂĄ utilização de ĂĄreas comuns, atĂ© aquele que acha que o seu animal de estimação nĂŁo incomoda ninguĂ©m. A resolução destes problemas poderia acontecer na base do diĂĄlogo, mas acabam parando na Justiça e aumentando ainda mais o desconforto entre as pessoas, ou atĂ© mesmo, virando caso de polĂcia.
“Viver em condomĂnio Ă© saber respeitar a individualidade, mas ao mesmo tempo, a coletividade”, destaca o aposentado ClĂ©sio Heleno Figueiredo, que ocupou o cargo de sĂndico por quase 20 anos, somados os trĂȘs prĂ©dios em que morou. “Ă preciso ter disciplina e estreitar os laços, afinal, um “bom dia” e um “boa tarde” fazem muito bem”, pontua, acrescentando que, nestas quase duas dĂ©cadas, aprendeu a lidar com todo o tipo de problema e tentar soluçÔes sem o intermĂ©dio da Justiça. “Entre as muitas reclamaçÔes que recebia, a liderança da lista eram os animais de estimação. Embora sejam permitidos em muitos prĂ©dios, eles acabam incomodando outros moradores por conta do barulho.”
Diferente de ClĂ©sio, a maior dor de cabeça enfrentada pelo presidente da Associação de Moradores e ProprietĂĄrios do Bairro ChalĂ©s do Imperador, Aldemir NegrĂŁo, Ă© a recusa de alguns moradores e proprietĂĄrios de lotes em pagar a taxa cobrada pela entidade para custear os gastos com manutenção e segurança das ruas. “Infelizmente precisamos acionar a Justiça nestes casos”, ressalta. Aldemir comenta que hĂĄ outros problemas, mas que ocorrem de forma cĂclica e sĂŁo resolvidos na base da conversa. “Entendo que a convivĂȘncia precisa ser a mais amigĂĄvel possĂvel. Por isso usamos o diĂĄlogo para solucionar os conflitos”. Por lĂĄ, o presidente destaca que hĂĄ reclamaçÔes, tambĂ©m, por parte dos animais domĂ©sticos, alarmes sensĂveis que disparam com facilidade e obras que incomodam por conta do barulho. “Buscamos sempre um acordo entre os vizinhos, como horĂĄrios para iniciar o serviço da obra e medidas para ajustar os alarmes.”
Sem querer, Aldemir e ClĂ©sio atuam informalmente como mediadores de conflito nos locais onde vivem. A prĂĄtica, porĂ©m, Ă© bem vista por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que publicou, em 2010, a resolução 125, que prevĂȘ a instalação de Centros JudiciĂĄrios de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejus) em todo o paĂs, voltados para a realização de sessĂ”es de mediação e conciliação, dando tratamento adequado aos conflitos de interesses, entre eles os de relaçÔes continuativas, como familiares e vizinhança. Em Juiz de Fora, existem algumas centrais que oferecem o serviço de forma gratuita e que tĂȘm obtido ĂȘxito perante os conflitos mediados (ver quadro).
A resolução de conflitos por meio da mediação consiste em reunir as partes em sessĂ”es individuais e conjuntas para que o mediador possa ouvir e entender cada caso, sem a necessidade de entrar com um processo na Justiça. Ao contrĂĄrio da conciliação, nĂŁo hĂĄ sugestĂ”es e indicaçÔes de soluçÔes por parte do mediador. Quem estabelece o acordo sĂŁo as partes. Mas em caso do nĂŁo cumprimento do mesmo, as sançÔes acordadas podem ser aplicadas. A mediação tambĂ©m Ă© um processo voluntĂĄrio, ou seja, precisa partir do interesse de cada parte envolvida. Geralmente, os casos tratados pelas centrais tĂȘm atĂ© trĂȘs meses para serem solucionados.
“O cumprimento de acordos de mediação beira 90%, jĂĄ entre aqueles que correm no JudiciĂĄrio, 50%. Esta disparidade acontece pela origem do acordo, afinal, existe diferença entre cumprir aquilo que vocĂȘ mesmo propĂŽs e o que um terceiro determinou, no caso, o juiz”, comenta Fernando Guilhon, coordenador do Dialogar, o Centro de Mediação pertencente ao NĂșcleo de PrĂĄticas JurĂdicas da UFJF. Ele alerta que, caso as partes jĂĄ tenham recorrido Ă Justiça, nada impede que ambas busquem a central de mediação. “Um nĂŁo exclui o outro”. Nos Ășltimos dois anos, o Dialogar jĂĄ promoveu cerca de 40 mediaçÔes e, neste perĂodo, nenhum dos casos teve reincidĂȘncia. Cada caso Ă© monitorado por seis meses.
“Quando o conflito Ă© tratado diretamente no JudiciĂĄrio, terĂĄ sempre o vencedor e o perdedor. Quem perde continua insatisfeito”, comenta Ivone Almeida, coordenadora da Central de Mediação e Conciliação e do NĂșcleo de PrĂĄticas JurĂdicas (Nuprajur) do Instituto Vianna JĂșnior. Nos Ășltimos dois anos e meio, a central da instituição, que possui parceria com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), jĂĄ emitiu cerca de 500 acordos desta natureza. Entre as principais queixas, segundo Ivone, estĂŁo animais domĂ©sticos, barulho, utilização de garagem e obras que necessitam da entrada no terreno do vizinho.
“Os bairros estĂŁo crescendo, e isto acaba interferindo na origem do conflito. Um exemplo comum que temos aqui Ă© quando o pai concede sua laje ou parte do terreno para o filho construir. Para expandir a rede de esgoto, por exemplo, Ă© necessĂĄrio mexer no terreno do vizinho, o que jĂĄ resulta em certo desconforto”, ressalta. Ivone tambĂ©m pontua que o modelo de habitação praticado hoje no paĂs jĂĄ propicia conflitos, pois tratam-se de apartamentos e casas cada vez menores e um nĂșmero grande de pessoas convivendo em um mesmo espaço.
Mediação sem processo na Justiça
Muro de divisa também traz dor de cabeça
As divisas entre os terrenos tambĂ©m se portam como estopim. Embora o CĂłdigo Civil Brasileiro (Lei nÂș 10.406, de 10 de janeiro de 2002) assegure que o muro que divide duas propriedades Ă© de responsabilidade de ambos os vizinhos, tanto para a construção quanto para a conservação (ver quadro), muitos desconhecem a norma e acabam fazendo disso um conflito muito maior. Uma moradora do Parque das Ăguas, que preferiu nĂŁo se identificar, buscou a mediação para tentar um acordo com o vizinho de fundos para receber a metade do valor gasto para a construção do muro. “Quando mudamos para lĂĄ, eu e minha mĂŁe conversamos com nossos vizinhos para dividirmos as despesas. Embora a esposa tenha concordado, o marido nĂŁo, por achar que o valor estava alto. Ele e minha mĂŁe chegaram a discutir feio, o que deixou nossa relação bastante estremecida”, comenta.
Ela conta que a obra era delicada em função das casas estarem localizadas na parte alta do bairro, o que requer mais cuidado com a construção. “Pelas reuniĂ”es de mediaçÔes jĂĄ realizadas, a informação que temos Ă© que eles irĂŁo nos ressarcir. Se cumprirem o acordo, nĂŁo vejo problemas em retomar a nossa relação, mesmo que seja por cordialidade.” Na visĂŁo de Fernando Guilhon, coordenador do Dialogar, em alguns casos, o conflito Ă© visto como algo positivo, alĂ©m de ser uma Ăłtima oportunidade para a pessoa se transformar e ter contato com o seu vizinho. “Todas as regiĂ”es da cidade deveriam ter seus nĂșcleos de mediação para restabelecer o diĂĄlogo e formar uma cultura de paz”, ressalta.
Conflitos sĂŁo reflexos da sociedade
As relaçÔes entre as pessoas mudaram nos Ășltimos anos, e quando se trata de vizinhança, houve atĂ© inversĂŁo de valores. Para Ivone Almeida, estes fatores sĂŁo grandes atenuantes para a motivação dos conflitos entre vizinhos nos dias atuais. “As pessoas estĂŁo mais preocupadas em ter e nĂŁo em ser. Assim elas estabelecem relaçÔes rasas, motivadas, inclusive, pela globalização e o ato de consumir, o que proporciona ainda mais conflitos. No passado, nossas relaçÔes eram baseadas na Ă©tica, no carĂĄter e na moral, hoje sĂŁo rarefeitas e se desfazem, por nĂŁo existir mais o respeito entre as pessoas.”
“Vivemos a cultura do individualismo, pois achamos que somos autossuficientes e que nĂŁo precisamos do nosso vizinho para nada. A vida agitada que levamos hoje nos impede de nos relacionarmos com eles”, destaca Fernando Guilhon. “A chave do diĂĄlogo Ă© a oitiva, que engloba nĂŁo sĂł a audição, mas a expressĂŁo corporal e o coração. A aceleração da vida e a falsa ideia que somos autossustentĂĄveis traz o vizinho como um problema, e nĂŁo como solução”, pontua.
PolĂcia sĂł em casos extremos
Quando um vizinho discute com outro, a primeira coisa que vem Ă cabeça Ă© chamar a polĂcia. No entanto, ela sĂł deve ser acionada quando o conflito extrapola o incĂŽmodo, passando para uma agressĂŁo verbal, ou atĂ© mesmo lesĂŁo corporal. “Mesmo depois de procurar a PolĂcia Militar, nada impede que o problema seja resolvido pela mediação. A mediação nĂŁo exclui a polĂcia, nem o advogado e nem o juiz. Todos sĂŁo extremamente importantes. Para dar tudo certo, tem de haver trabalho em conjunto”, explica Ivone. “O diĂĄlogo Ă© sempre o melhor caminho. Se hĂĄ possibilidade de conversar com o seu vizinho, procure-o em um momento oportuno. Busque sempre o diĂĄlogo para chegar Ă solução comum a todos”, ressalta Fernando.