Crimes virtuais sem investigação
"As investigações precisam migrar para a internet, pois os criminosos já migraram." O alerta do especialista em direito eletrônico Rony Vainzof aponta a necessidade urgente de mudança diante do cenário crescente de crimes virtuais intencionais ou praticados por pessoas que tomam atitudes impensadas. No primeiro caso, os crimes são praticados pelos chamados crackers, ou seja hackers que utilizam o conhecimento tecnológico sobretudo para praticar fraudes eletrônicas com desvio de dinheiro. No caso das demais pessoas, as publicações que ofendem a honra de outras têm sido frequentes nas redes sociais, como o Facebook. Apesar desta situação, as vítimas digitais não têm a quem recorrer em Juiz de Fora. Mesmo com a nova lei de crimes cibernéticos em vigor há mais de um mês – estipulando prisão de até dois anos para quem invadir computadores alheios, tablets ou celulares -, não há uma delegacia especializada na cidade e nem previsão para que seja implantada. Os casos são apurados por policiais sem treinamento ou conhecimento técnico. A falta de infraestrutura na Polícia Civil resulta em investigações falhas, criminosos impunes e vítimas desprotegidas.
Para preservar sua reputação, muitas vezes, são as próprias vítimas, sejam pessoas físicas ou jurídicas, que precisam juntar provas e lutar para o término da apuração. Isso foi o que fez uma empresária juiz-forana de 32 anos. Com família consolidada, a mulher teve a foto roubada e um falso perfil criado em sites de relacionamento íntimo, há dois anos. Atordoada pela repercussão em sua vida, a primeira providência foi buscar auxílio junto à Polícia Civil. "Disseram que não teriam recursos para me ajudar a identificar o autor. Tive que recorrer ao Ministério Público, que me encaminhou para a Polícia Federal, mas, mesmo assim, só a delegacia de Brasília conseguiu me dar a identificação. Só consegui avançar porque eu e minha família fomos atrás. Mas o processo está parado porque o IP da máquina é de uma empresa, e ainda não tenho como provar quem foi o autor. É triste ver que as vítimas desses crimes não têm respaldo."
O mais grave é que, com a popularização das redes sociais, os casos vêm ganhando repercussão. Uma informação é postada, os compartilhamentos são imediatos, os julgamentos instantâneos e a imagem de uma empresa ou de uma pessoa pode ruir em segundos. Em fevereiro, uma loja de agropecuária de Juiz de Fora teve sua reputação atingida depois que o caso da morte de um coelho ganhou destaque nas redes sociais, quando uma foto do animal foi publicada, junto com o relato de que ele havia sido colocado dentro de um saco plástico, ainda vivo. Em um só dia, foram mais de seis mil compartilhamentos no Facebook, e o caso resultou em um inquérito civil na Promotoria do Meio Ambiente. Exposta, a empresa realizou sua defesa, mas preferiu não comentar o assunto até o fim do inquérito, que segue em andamento, sob sigilo. Depois do episódio, segundo a assessoria de comunicação da empresa, todo o conteúdo divulgado nas redes sociais citando o nome da agropecuária vem sendo monitorado.
No último mês, a fotografia de um homem foi amplamente divulgada na rede social e em listas de e-mails como se fosse a de um suspeito de roubar e tentar estuprar uma mulher, no Alto dos Passos, Zona Sul. O próprio delegado da área, Eurico da Cunha Neto, só foi informado do caso após a fotografia se espalhar na internet. "Intimei o autor das mensagens, além da vítima. Considero muito precipitado postar esse tipo de mensagem no Facebook. Ao acusar alguém de uma ação criminosa, pode-se estar cometendo calúnia", alertou o delegado. Segundo o autor do e-mail, a atitude só foi tomada para evitar novas vítimas já que o suspeito não havia sido preso.
Para o especialista em direito eletrônico Rony Vainzof, o fundamental é uma mudança de postura. "A internet não pode ser terra sem lei. As práticas delituosas são as mesmas, mas usadas em outro meio. Em geral, em razão da demanda nas delegacias, os crimes virtuais são relegados a segundo plano." Diante desse cenário, outro advogado especialista em direito digital, Alexandre Atheniense, defende a adoção de atitudes preventivas também pelos usuários. "A reputação é o patrimônio do século XXI. Com as redes, ela é colocada em risco diariamente, por isso a importância de pessoas e empresas estarem vigilantes o tempo todo."
Especialista defende expressão, mas sem ultrapassar o limite
Cuidado! Liberdade de expressão tem limite. É o que alertam os especialistas. A Constituição Federal garante a liberdade de pensamento, entretanto, a legislação brasileira prevê também penalidades para quem atinge o direito de terceiro. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Wanderley Paiva resume: "É necessário compatibilizar as garantias da honra e imagem do indivíduo e a liberdade do pensamento, de modo que convivam harmonicamente, sem impedir o direito à livre informação e, por outro lado, garantir o direito do cidadão de não ter sua honra e imagem violadas, pela exposição excessiva ao público."
O advogado especialista em direito digital Alexandre Atheniense explica as responsabilidades a que os usuários estão sujeitos. "As pessoas podem expressar seus pensamentos na internet. Só é preciso que fiquem atentas, pois, ao ultrapassar o limite, podem cometer ofensas e responder criminalmente por isso, conforme prevê o Código Penal em seus artigos 138,139 e 140. Além disso, pode ser acionada civilmente, ou seja, ela pode ter que pagar uma indenização proporcional ao dano que cometeu a terceiros. Mesmo quem apenas compartilha as ofensas pode responder criminalmente, pois deu suporte para a prática do ilícito, ou seja, ajudou de alguma forma para que o dano ocorresse."
O internauta pode, ao ofender a honra e a dignidade de uma pessoa com xingamentos, cometer injúria. Se atentar contra a reputação de alguém, com a intenção de torná-lo passível de descrédito na opinião pública, está cometendo difamação. Já a calúnia é quando a pessoa imputa uma ação criminosa à outra. "Esses são os delitos que podem ser observados facilmente nas redes sociais. Sem que as pessoas, às vezes, se deem conta", pontua Atheniense. Atualmente, os ataques à honra são o segundo tipo de incidente mais comum na internet, perdendo para fraudes eletrônicas. Só no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais estão listados 229 processos por calúnia, injúria e difamação na rede.
Maior potencial lesivo
Rony Vainzof, professor de direito eletrônico do Instituto Mackenzie e da Escola Paulista de Direito, ainda destaca que os crimes praticados na internet, principalmente os crimes contra a honra, têm maior potencial lesivo. "Antes as pessoas usavam o meio verbal ou escrito para fazer ofensas, mas, com a divulgação direta na rede, há um aumento da exposição e, consequentemente, da agressão."
Usuários que participam ou moderam grupos no Facebook para realizar denúncias sabem do risco, mas acreditam agir com prudência. Jornalista especializada em jornalismo multiplataformas, Grazielle da Silva Soares, 22 anos, moderadora do Grupo Juiz de Fora, defende as mídias sociais como ferramenta e lugar adequado para realização de denúncias. "Afinal, todo mundo, de um modo em geral, está no Facebook. As pessoas perdem a inibição e, através dos compartilhamentos e curtidas, um assunto pequeno pode tomar proporções gigantescas. Mas tenho medo de ser processada, e isso me freia no sentido de não divulgar coisas sem provas. Acho que a maioria das pessoas, em se tratando de emitir opinião e denúncias via rede, não se atentou para isso, continuam achando que a internet é terra sem lei e que pode-se falar o que quiser sem maiores consequências."
Usuária assídua das redes sociais e protetora dos animais, a fonoaudióloga Bruna Assad Machado, 28, defende o critério para postagens. "Antes de republicar algo, procuro me certificar da veracidade. O Facebook é um excelente meio para divulgar notícias e denúncias, mas é preciso cuidado. Às vezes, o que você divulga agride o outro."
Para o especialista em portais e redes sociais Flávio Mendes, a situação reflete a ausência de um código de ética para as redes. "Em termos jurídicos, nos últimos anos, começaram a surgir os primeiros ‘problemas’. Recentemente um juiz federal norte-americano determinou que uma empresa readmitisse cinco funcionários que haviam publicado conteúdo não apropriado sobre a empresa no Facebook. Na sentença, ele menciona a troca de mensagens no Facebook, como parte do processo. A recomendação do magistrado é para que qualquer empresa tenha um código de ética ou de conduta social, que oriente seus funcionários sobre o comportamento em redes sociais, principalmente deixando claro o que a empresa entende como ‘não apropriado’."
Cidade não tem delegacia especializada
A nova legislação de crimes cibernéticos, em vigor desde abril, que ficou conhecida como Lei Carolina Dieckmann, também foi sancionada para reduzir a impunidade virtual. Mas em Juiz de Fora nem mesmo a lei garante a solução de casos. Falta pessoal e capacitação para a Polícia Civil. "Hoje o que fazemos é por nosso próprio conhecimento, mas é complicado porque a apuração de crimes virtuais depende de conhecimento muito específico, técnico. Quando precisamos, Belo Horizonte nos dá alguma dica, mas só. Fazemos o que dá", relata um delegado. "Como vamos deixar de apurar um homicídio, por exemplo, para apurar um crime virtual? Não temos gente nem para investigar os crimes reais", dispara outro delegado.
Titular da 1ª Delegacia Regional de Polícia Civil, Paulo Sérgio Xavier Virtuoso, confirma: "Não há treinamento. Hoje investigadores e delegados usam seus próprios conhecimentos. Com certeza, o domínio sobre a rede facilitaria o trabalho das investigações, aumentando as chances de sucesso. Atualmente cabe a cada delegacia distrital realizar as investigações dos crimes, direcionadas de acordo com o endereço das vítimas. A Delegacia Especializada de Investigações de Crimes Cibernéticos (Deicc), em Belo Horizonte, nos dá suporte."
Virtuoso ainda é enfático ao afirmar que não há previsão para a implantação de uma especializada na cidade. "Hoje não há expectativa de implantação de uma delegacia de crimes virtuais na cidade, até porque não há previsão legal. De uns anos para cá, a configuração da Polícia Civil no estado se dá por competência territorial, ou seja, as delegacias são por região, assim perdemos a especialização. Entretanto, há dois meses, em virtude dos índices de criminalidade, o Governo publicou a autorização para retorno das especializadas de homicídios, drogas e crimes contra o patrimônio (furtos e roubos). Até o fim do mês, ou mais tardar no mês que vem, retomaremos as duas primeiras. Porém, uma especializada em crimes cibernéticos ainda não é possível em Juiz de Fora, também por falta de pessoal."
Prejuízo crescente na rede bancária
De cada R$ 100 roubados ou furtados de bancos no Brasil hoje, pelo menos R$ 95 são fraudes eletrônicas, feitas por internet banking ou cartões, segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A informação foi divulgada em reportagem da Agência Estado. Segundo a matéria, no ano passado, essas fraudes provocaram prejuízos de R$ 1,4 bilhão nos bancos. Já os assaltos feitos por quadrilhas nas sedes dos bancos, com explosões de caixas eletrônicos, causaram prejuízos estimados em R$ 75 milhões.
"Nos últimos cinco anos, o volume das transações eletrônicas aumentou muito, e os fraudadores aproveitaram. Os bancos estão investindo em tecnologia para reduzir os riscos. No último ano, houve redução de 6,7% nas fraudes eletrônicas, apesar de as tentativas terem aumentado 75%", diz Wilson Gutierrez, diretor técnico da Febraban.
Perfil dos ladrões
Os ladrões que atuam por meio da tecnologia são de classe média, estudaram e conhecem computação. Agem em diferentes estados brasileiros, em quadrilhas compartimentadas, que dividem as tarefas para dificultar a ação da polícia. Eles possuem diversas artimanhas para enganar os clientes dos bancos, instalando vírus ladrões nos computadores de terceiros ou direcionando as vítimas para páginas falsas na internet. Assim, os fraudadores obtêm os dados bancários da vítima e desviam dinheiro para suas contas. Nessa modalidade de crime, os bancos arcam com prejuízos do cliente fraudado.
A dificuldade de identificar o endereço dos computadores bandidos é um trunfo dos ladrões. Convênio feito pela Polícia Federal com a Febraban, que começou a repassar os dados das fraudes para facilitar a investigação, ajudou a diminuir a impunidade.