Discurso pró-armas no Congresso é refletido nas ruas
Disparos em situações inusitadas são cada vez mais frequentes e fazem vítimas, como a professora Fabiana, morta em 2019 na Marechal
Desde 2015, discursos pró-armas dominam os plenários da Câmara e do Senado. O levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado – organização dedicada a produzir indicadores sobre a violência armada no país – revela que mesmo com a posse do presidente Lula, em 2023, o qual mudou o direcionamento de seu antecessor Jair Bolsonaro (PL), adepto de propostas para armar a população, parlamentares a favor da expansão da posse de instrumentos como revólveres e pistolas mantiveram hegemonia. O resultado pode ser percebido diretamente nas ruas. Em Juiz de Fora, por exemplo, apesar da queda dos homicídios praticados com armas de fogo, disparos em situações inusitadas são cada vez mais frequentes e fazem vítimas, inclusive inocentes.
Um caso emblemático, ocorrido há quase cinco anos, foi a trágica morte da professora Fabiana Filipino Coelho, 44, baleada no abdômen na manhã do dia 20 de novembro de 2019, na Rua Marechal Deodoro, no Centro de Juiz de Fora, enquanto ela fazia compras na véspera do aniversário de 5 anos do filho. O tiro foi disparado em meio ao movimentado centro comercial por um sargento reformado da Polícia Militar, 48. Ele justificou ter atirado para conter um adolescente em fuga de um assalto, que estava com uma faca nas mãos e poderia ferir outra pessoa, assim como cortou o braço do policial ao ser derrubado por ele em via pública. O julgamento aconteceu no dia 20 de junho, e o militar foi condenado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A pena varia de um a três anos de detenção. A família da vítima, por meio do Ministério Público e do assistente de acusação, pede a condenação do PM por homicídio por dolo eventual, quando o agente não tem a intenção direta de causar a morte, mas assume o risco. Com isso, a pena poderia chegar a 20 anos de prisão.
O crime, que levou a manifestações nas ruas contra a violência, segue em fase de recursos junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e também chegou à Câmara Federal. “O caso de Fabiana Filipino é um exemplo doloroso das consequências de se usar armas de fogo de forma irresponsável em áreas públicas. É inadmissível que uma vida inocente seja perdida por causa de um ato imprudente. Fabiana estava simplesmente seguindo seu caminho e foi privada de sua vida”, declarou a deputada mineira Ana Pimentel (PT), na semana do julgamento, destacando a necessidade de rigor na regulamentação do uso de armas, abrangendo policiais reformados ou fora de serviço.
Outra situação que causou comoção na cidade, com protestos e abaixo-assinado com pedidos de Justiça, foi o homicídio do funcionário público aposentado e skatista Daniel Carvalho de Andrade, 45, conhecido como “Daniel Monstro”. Ele foi assassinado a tiros por um vizinho militar do Exército, 41, na noite de 17 de março, na área comum do prédio onde residia com a mãe, 73, na Avenida dos Andradas, no Morro da Glória, região central. Após a reconstituição do crime, o inquérito foi concluído pela Polícia Civil no dia 24 de de julho sem indiciamento e encaminhado ao Poder Judiciário para análise do Ministério Público (MPMG). A defesa alega que o militar atirou porque a idosa estaria sendo vítima de violência doméstica e teria pedido por socorro, mas a versão é negada pela família, que aponta disparos desnecessários por parte do vizinho, com desfecho fatal.
Nove são assassinados com armas no 1º semestre
Dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) apontam que nove pessoas foram assassinadas com armas de fogo em Juiz de Fora no primeiro semestre deste ano. O número é 71,88% menor do que os 32 registros no mesmo período do ano passado. Na 4ª Região Integrada de Segurança Pública (Risp), que engloba mais 86 municípios do entorno, a redução foi menor, de 23,66%, com 71 casos em 2024 e 93 no ano anterior. Na contramão dessa queda de crimes violentos, entretanto, além dos dois casos de repercussão já citados, que motivam reflexões acerca do uso de armas de fogo, pelo menos três ocorrências registradas nos últimos dois meses na cidade reforçam a possível banalização do uso de armamentos em situações de conflitos.
No dia 26 de junho, o funcionário de um frigorífico, de 34 anos, foi baleado por um sargento da PM à paisana, da mesma idade, durante briga de trânsito em frente a um açougue no Bairro Santa Terezinha, região Nordeste. A vítima ficou internada por cinco dias em decorrência dos tiros, mas sobreviveu. Como supostamente o homem teria ameaçado o militar à paisana com um facão, ele recebeu voz de prisão pela PM e teve o flagrante confirmado pelo delegado de plantão. Já o sargento que atirou, foi ouvido e liberado. Enquanto o caso é investigado pela Delegacia Especializada de Homicídios, a Promotoria de Justiça do Controle Externo da Atividade Policial de Juiz de Fora instaurou notícia de fato para averiguar a regularidade do Registro de Evento de Defesa Social (Reds), porque “a vítima civil foi atingida pelas costas, na coxa esquerda, o que desfaz o BO no conteúdo em que afirma que a ação do militar foi praticada em legítima defesa.”
Em 6 de julho, outra discussão terminou em disparo, desta vez fatal, no Bairro Igrejinha, Zona Norte. De acordo com a PM, um morador, 28, teria acabado de chegar a um bar às margens da BR-267, quando um cliente teria ido ao balcão onde ele estava, iniciando um atrito verbal. Durante a briga, o homem sacou uma arma e disparou contra o residente. Mesmo ferido, ele tentou deixar o local, mais caiu perto da estrada e acabou executado com mais um tiro na cabeça. O atirador fugiu em um carro e não foi encontrado.
Já no dia 19 de julho, um tumulto na Rua Ribeiro de Abreu, no Bairro Progresso, Zona Leste, terminou com a morte de um homem, 39, e com um sargento da PM esfaqueado em estado grave. Segundo a PM, o militar chegava em casa, de folga e à paisana, quando teria se deparado com um casal bebendo e usando drogas na porta de casa. O morador teria “tirado satisfação” e acabou sendo golpeado com faca pelo suspeito. Ferido entre o olho e a orelha, ele sacou sua arma e atirou contra o agressor, que não resistiu. Depois de ser atendido no HPS, o militar foi transferido para o Monte Sinai. O caso segue em investigação.
75 discursos a favor da população armada e 24 contra
O levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado mostra que, em 2023, o primeiro da atual configuração da Câmara e do Senado, houve três vezes mais parlamentares com discursos pró-ampliação do acesso a armas pela população do que contrários, totalizando 75 a favor e 24 contra. Entre os armamentistas, os discursos são sobre o direito à defesa, o descontrole da segurança pública, o impacto do desarmamento no aumento da violência, os aspectos legais do uso de armas e a divisão entre bandidos e cidadãos de bem. Já no grupo pró-controle de armas, prevalecem o monopólio do uso da arma pela polícia, as consequências de uma maior circulação de armas para a segurança pública, a necessidade de uma solução mais ampla para a violência e os impactos para mulheres, população não-branca e em escolas.
“Apesar da inflexão nas ações do Executivo depois da derrota de Bolsonaro, houve uma institucionalização do movimento pró-armamento no Congresso Nacional. Além de dobrar a bancada, o movimento passou a se organizar, como com a criação do grupo Pró-Armas, que financiou uma série de candidaturas ao Congresso”, explica Terine Coelho, coordenadora de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado. De acordo com o estudo, o domínio dos discursos favoráveis à facilitação do acesso às armas por qualquer cidadão teve início em 2015. “Olhar para a série histórica do debate parlamentar demonstra como as normas vigentes que controlam o acesso de civis às armas estão sob risco. Embora o tema da posse de armas venha sendo tratado historicamente por meio de normativas do Executivo, é importante olharmos para a correlação de forças no Congresso Nacional, que pode a qualquer momento alterar a legislação atual”, conclui Terine.