Estudo brasileiro: quase metade das crianças com escape diurno de xixi é punida
Levantamento feito por pesquisadores da Bahia avaliou 188 crianças com distúrbios do trato urinário e constatou que boa parte delas recebe algum tipo de repreensão, física ou oral, por conta do problema
Quase metade (48,9%) das crianças que sofrem com escapes de xixi durante o dia são punidas pelos pais ou responsáveis, aponta estudo brasileiro realizado no Centro de Distúrbios Urinários da Criança (Cedimi) da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. O trabalho foi apresentado em setembro, no maior congresso de pediatria urológica do mundo, o Pediatric Urology Fall Congress, da Sociedade Americana de Urologia Pediátrica, que aconteceu nos Estados Unidos.
Uma investigação anterior feita por pesquisadores de Minas Gerais já havia constatado alto índice de punição das crianças que sofrem de enurese noturna, ou seja, que fazem xixi na cama. A partir desses resultados, o grupo liderado pelo urologista Ubirajara Barroso, que é professor Adjunto de Urologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, decidiu investigar se as crianças que sofrem de incontinência urinária diurna também enfrentam algum tipo de punição.
Para chegar aos resultados, a psicóloga Ana Aparecida Braga, da equipe do Cedimi, aplicou um amplo questionário para 188 crianças com alterações no trato urinário inferior que eram atendidas no centro. Eles também avaliaram a gravidade dos sintomas urinários e constipação. Do total de crianças que participaram, 143 (76%) também tinham problemas de enurese noturna.
Entre as questões aplicadas, uma perguntava se essa criança lidava com alguma punição devido à incontinência urinária. Se a resposta fosse sim, os pesquisadores perguntavam o tipo de punição: física com contato (apanhar); física sem contato (colocar de castigo) ou oral (gritos e broncas).
Os resultados mostraram que 48,9% sofrem alguma forma de punição parental: 20% disseram que apanham dos pais; 18% afirmam que são colocadas de castigo e 78% alegam receber alguma punição oral (gritos, broncas, bullying). A soma ultrapassa 100% porque algumas crianças declararam sofrer mais de um tipo de punição.
“Mesmo que a gente soubesse que isso acontece, pela nossa prática clínica, o resultado nos surpreendeu. Muitos pais acham que essas crianças deixam a urina escapar porque estão com preguiça de ir ao banheiro, porque preferem ficar brincando com os amigos. E consideram que a criança é culpada por isso”, diz Barroso, que também é presidente da International Children’s Continence Society (ICCS).
Para o urologista, a conscientização pode ajudar a reduzir as práticas parentais punitivas. “Os pais e cuidadores precisam entender que a criança que perde urina não faz isso por rebeldia e, sim, porque tem um problema de saúde que precisa ser tratado”, afirma.
Na visão da psicóloga Lucianne Areal, do Departamento Materno-Infantil do Hospital Israelita Albert Einstein, os resultados evidenciam o quanto a punição não é efetiva para propiciar mudanças, além de não promover o bem-estar emocional e o desenvolvimento saudável da criança. “Esses estudos são importantes para sensibilizar pais e responsáveis para melhor manejar situações complexas e buscar auxílio profissional para orientação”, comenta.
Condição frequente
De acordo com Ubirajara Barroso, a disfunção do trato urinário inferior (DTUI) é uma condição muito prevalente em crianças e afeta não apenas a saúde física, mas também o bem-estar emocional e psicossocial delas. Estima-se que o problema atinja cerca de 7% das meninas e 3% dos meninos aos 7 anos de idade e, na maioria das vezes, vem associado à enurese noturna.
O xixi na cama causa mais impacto emocional para a família toda, pois o problema afeta a dinâmica da casa durante a madrugada. Os escapes durante o dia, porém, costumam impactar mais os pequenos. “A criança que faz xixi na cama está em casa, num ambiente seguro para ela. Mas existe um grupo enorme de crianças que sofre com escapes de xixi na roupa durante o dia, no meio da escola, por exemplo. Nesses casos, ela se esforça para não deixar a urina escapar e sofre com o temor de ser descoberta na frente dos amiguinhos”, observa o urologista.
No estudo baiano, os autores destacam que punir essas crianças aumenta o estresse e a ansiedade nelas. A psicóloga do Einstein concorda. “Posso citar primeiramente ansiedade, insegurança e medo em relação à figura parental e em relação a conseguir controlar as perdas urinárias para aprovação e reconhecimento”, diz Lucianne Areal.
Outras possíveis consequências são a baixa autoestima e as implicações para diferentes contextos da vida da criança – como a dificuldade de estabelecer relacionamentos saudáveis “O desgaste da relação entre criança e pais, por conta das punições, desfavorece o vínculo, a confiança e não auxilia no enfrentamento das dificuldades, nem ajuda a lidar com o estresse e a frustração”, complementa a psicóloga.
Como cuidar?
A disfunção urinária na criança pode variar em relação à duração, já que há variáveis diferentes para sua resolução. Se após o desfralde (que costuma acontecer até os 5 anos de idade) o problema ocorrer de forma sistemática, é importante que os pais consultem um especialista para avaliar o caso e receber orientações sobre como conduzir a situação. A equipe de pesquisadores da Bahia enfatiza a importância de uma abordagem multidisciplinar que inclua suporte psicológico para pais e filhos, buscando melhorar a qualidade de vida e o sucesso terapêutico.
Entre as formas de resolver o problema, estão uma série de medidas e orientações comportamentais que têm como objetivo melhorar os hábitos miccionais da criança: manter a hidratação adequada durante o dia e não passar mais do que três horas sem fazer xixi; urinar de forma relaxada e com os dois pés apoiados no chão; esvaziar a bexiga antes de dormir e não beber líquidos perto da hora de ir para a cama. Se nenhuma dessas medidas funcionar, é possível fazer fisioterapia pélvica e eletroestimulação dos nervos da bexiga.
Segundo Areal, a busca por ajuda ocorre geralmente de forma tardia, o que influencia na identificação das possíveis causas e estratégias de tratamento, além de afetar a dinâmica familiar. “A maioria dos pais tem dificuldades em manejar o problema e manifesta impaciência. Querem resolução imediata ou o mais rápido possível”, analisa a psicóloga.“Paciência, compreensão, apoio e intervenção profissional são ações necessárias para melhor condução da situação.”