Aos 11 anos de idade, Sol Mourão, hoje com 24, foi a uma aula de dança pela primeira vez, no projeto social “Gente em primeiro lugar”, no Bairro Linhares, Zona Leste de Juiz de Fora, onde nasceu e cresceu. Na ocasião, sentiu seu corpo inteiro irradiar e nunca mais parou de frequentar o grupo. Antes disso, contudo, ela já tinha sido chamada para uma apresentação especial de dança na escola por uma professora que havia percebido seu gosto especial pela coisa. A dança, que está em sua vida desde então, veio acompanhada por uma maior percepção do mundo em que vive e pela vontade de fazer uma arte política por onde quer que vá. Toda vez, com o mesmo prazer e empolgação que sentiu quando dançou pela primeira vez.
Ao longo dos anos participando das aulas de dança que aconteciam em seu bairro, ela foi apresentada ao grupo Remiwl Street Crew. Ali, se envolveu ainda mais com a dança urbana, que hoje é a sua paixão. “O grupo me ensinou tudo o que eu sei, e se eu sou uma artista hoje dentro de Juiz de Fora, é por conta do grupo. No grupo, aprendemos na prática, fazendo aula, participando de eventos e também compartilhando as nossas vivências”. Foi lá, também, que viu a possibilidade de aprender e crescer. Conforme foi avançando na prática, se tornou professora dentro do grupo.
No Remiwl, todos trabalham como voluntários. O grupo, de acordo com Sol, alcançou especial visibilidade depois do espetáculo “Ubuntu”, do qual ela se lembra como um verdadeiro sucesso de público. “Quando nos apresentamos no Cine-Theatro Central, a Funalfa chegou a falar que nenhum grupo ou coletivo periférico da cidade tinha conseguido lotar lá como a gente”, relembra. Com isso, as turmas explodiram – em apenas duas delas, eram mais de 120 alunos. “Era muita gente, era uma confusão, porque a gente usava o museu ferroviário para dar aula, mas não tinha sala. A gente tinha aula na plataforma e naquele gramado. Destruímos aquele gramadinho inteiro de tanto dançar”, ri.
Com o tempo, também procurou contribuir com a cena local de outras maneiras: a fixação de um ballroom na cidade foi uma das principais formas que ela encontrou. Conforme explica, o Ballroom é uma expressão cultural norte-americana, que nasceu por volta da década de 1950 e teve seu boom na década de 1980. “Era semelhante a uma festa que acontecia dentro de salões que eram ambientes seguros e acolhedores para pessoas LGBTs e principalmente para pessoas trans e travestis pretas. Era um evento em que aconteciam batalhas, desfiles, danças. Foi assim que comecei a ter um maior reconhecimento da cena”, explica. Criar esse tipo de evento em Juiz de Fora, então, foi uma iniciativa para fortalecer pessoas e fazer com que a cultura local se tornasse também mais diversificada, através de uma ação bem concreta no sentido de criar um espaço para deixar o seu outros corpos mais livres.
(Re)xistindo pela e para a arte
O período da pandemia foi bastante desafiador para Sol; além das aulas de dança on-line terem sido muito difíceis, também precisou ir para outra cidade durante um período. Nesse processo, teve mais tempo livre e foi obrigada a usá-lo para entender e enfrentar quem a Sol realmente era. “Eu sou muito focada, então sempre ficava pensando nas coisas que eu tinha que fazer. Por mais que já tivesse pensado sobre ser uma mulher trans, eu evitava esse pensamento. E a pandemia me fez refletir e me entender melhor”, explica. Para ela, é nítido que o apoio do Remiwl e do Ballroom foi fundamental. Foi a partir da relação com esses grupos que a discussão sobre gênero e o entendimento sobre a vivência e as histórias de cada um foram coisas que passaram a fazer parte do seu cotidiano, de fato.
Durante o período, Sol também teve dificuldade em encontrar fontes de renda, já que os estúdios em que dava aula interrompeu boa parte das atividades. Dessa forma, como conta, passou a depender do auxílio oferecido pelo Governo, e começou a buscar outros formas de existir no meio da arte. A produção surgiu justamente dessa necessidade. “Comecei a estudar sobre produção para poder aprender como participar de editais logo que abrissem.” Foi assim que Sol conseguiu viabilizar projetos que foi criando durante o período reclusa – e que só agora, em 2023, estão vindo a público.
Abertura que a arte traz
Para ela, a arte é o lugar onde mais se sente à vontade com ela mesma. Os grupos do qual participa, por isso mesmo, foram pensados para trazer liberdade não só para ela, mas para todos que participam. “Como são muitas pessoas trabalhando juntas (tanto no Remiwl quanto no ballroom), são muitas histórias e pessoas de todas as partes da sociedade. Então, falamos sobre esses corpos diversos, trazendo críticas e uma desconstrução de olhares”, diz. O amor é tanto que sente isso na pele. “Dentro dos ensaios, é o único lugar no qual eu não tenho disforia com meu corpo. Se minha calça rasgou, não me importo. Se estou descabelada, não me importo”, diz.
Sol enxerga como essencial desenvolver uma arte que política mesmo o tempo inteiro. Quando se movimenta, quando está em balls, sempre fica atenta a quem está no entorno e ao que pode ser criado a partir disso. “As pessoas se atraem pela arte, e naquele momento em que estão entretidas, a gente as convida a pensar sobre as coisas”, explica. Na sua experiência, as pessoas acabam percebendo melhor, nesses espaços, que realmente existem corpos de todos os jeitos, e passam a enxergar que diversos tipos de beleza e de experiências são capazes de existir. A própria arte LGBTQIAP+, em sua visão, não deve estar fechada em um nicho. “Nós podemos fazer todo tipo de coisa. Assim é muito mais bonito.”