Conheça Josélia Civinelli Furlan, que faz ‘frivolité’ há 70 anos e apenas para caridade

Na coluna desta semana, conheça a artesã que se dedica a uma técnica de confecção pouco conhecida que ela aprendeu quando criança e continuou a praticar a vida inteira

Por Elisabetta Mazocoli

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Desde que se aposentou, Josélia conseguiu se dedicar ainda mais à técnica, que pratica para não esquecê-la e porque já a considera como um vício positivo (Foto: Arquivo pessoal)

Josélia Furlan está quase fazendo 84 anos. Há 70 anos ela aprendeu uma técnica chamada frivolité, que vem do francês frívolo, e sobre a qual a imensa maioria das pessoas nunca ouviu falar. “Dizem que a palavra se origina de frivolidade, porque as mulheres ficavam fazendo e falando mal dos outros”, diz. Apenas com as mãos e um navetti, ela vai passando a linha fina de um lado para o outro, e precisa contar exatamente quantas voltas dá para que fique perfeito. Os bordados vão parecendo pequenas flores, e ela mesma dá nome aos pontos, já que não conhece quase ninguém que trabalhe com esse mesmo processo, e as revistas que vê sobre a técnica são em japonês. Alguns bordados, por exemplo, foram apelidados de “capelinha”, enquanto as irmãs chamam o trabalho de “renda do céu”. Se começa dando dez voltas e tem que repetir o mesmo número em todo o processo, ou o trabalho fica torto. A linha vai sendo tecida sem nó – que apenas é dado na hora certa. Às vezes, ela varia as cores, fazendo espécies de miolos para as flores. São dias para que um trabalho feito com tanta delicadeza, como esse, fique pronto. “É só isso”, explica sobre o processo de produção. Sua irmã, Elaine, completa: “Quer dizer, isso tudo”.

Ela aprendeu a técnica com uma vizinha, Maria da Glória Coelho, a quem chamava de tia Glorinha, quando ainda era muito nova e morava em Carangola. “Ela era uma senhorinha muito brava. A técnica é bem complicada, então ela zangava comigo e me mandava continuar, porque eu queria ir embora e desistir”, relembra. Foi pela insistência dessa mulher que ela continuou, como admite, e com os anos foi pegando cada vez mais gosto pela coisa, principalmente por ir vendo os resultados que conseguia ter. Nunca parou com o frivolité, apesar de ter trabalhado como servidora pública, ter feito datilografia e ainda ter tido um escritório junto com o marido. “Hoje, eu falo que, pra mim, é um vício. Normalmente, todo mundo sai pra rua pra fazer o seu vício, mas eu sou o contrário, porque meu vício é em casa”, ri. Mas tem uma preocupação: “Eu estou quase morrendo, né? Fico com medo disso ir acabando”.

A maioria dos seus trabalhos foram dados para a sua irmã, e, mesmo em casa, ela mostra que não tem muitos guardados. “Eu nunca liguei pra fotografar ou registrar as coisas que faço. Acho tão normal”, conta. Mas ela se lembra, por exemplo, de algumas peças que se orgulha especialmente de ter feito, como uma toalha para mesa de banquete ou uma barra vermelha para um vestido de chiffon de uma amiga. A família, recentemente, fez uma exposição reunindo o que tem de acervo da sua produção ao longo dos anos. “Eu fiquei um pouco envergonhada, porque elas tiveram muito trabalho. Como não tinha pra vender, podia parecer que era vaidade”, diz Josélia. Mas ela admite a emoção de ter visto os esforços e de ter seu trabalho reconhecido assim. “Eu não ia nem avisar, mas a minha filha falou pra avisar, sim, pra ela não passar mal”, conta Elaine.

Desde que se aposentou, Josélia conseguiu se dedicar ainda mais à técnica. Para ela, foi preciso sempre praticar um pouco para não esquecer, já que é algo realmente complexo e que exige atenção a muitos detalhes. “Tem muita gente que faz com agulha, mas eu não faço, porque eu gosto desse trabalho delicado. Mas eu não posso fazer dia e noite sem parar. Às vezes, eu largo e vou dar uma volta na rua”, diz. A rotina, além de tudo, exige que ela lave as mãos muitas vezes por dia, para não sujar a linha branca, e enxugue bem ainda, senão a linha não pega. Com muitos anos de costume, ela já é treinada para perceber qualquer problema com o tecer ou mesmo irregularidades na renda. A irmã Elaine, que sabe que ela faz essa técnica muitas vezes assistindo à televisão ou orando, atribui também ao frivolité, e ao seu alto grau de exigência em relação à atenção e à memória, a boa saúde da irmã: “É por isso que ela está com a cabeça boa desse jeito, tão lúcida”.

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(Foto:Arquivo pessoal)

Trabalho voluntário

O trabalho voluntário surgiu na vida de Josélia há mais de vinte anos, quando ela decidiu começar a visitar as pessoas que estão na Fundação Espírita João de Freitas. “Uma amiga minha sempre diz ‘eu não consigo ser como você, chegar e conversar com todo mundo’. Mas eu consigo, as pessoas gostam, precisam”, conta. Logo, ela foi se envolvendo cada vez mais, e conseguiu unir duas coisas que, para ela, eram tão caras – o frivolité e a caridade. Lá, há um bazar em que diferentes artesãs vendem suas peças para contribuir. “Eu faço por amor, para eles venderem lá e terem um lucro. São muitos custos, e as pessoas que trabalham lá precisam receber”, diz. Entre as peças que são vendidas, estão toalhinhas de rosto com barras rendadas, toalhas de banho e porta-copos.

Muitas vezes, as pessoas chegam ao bazar do local e pedem um número bem maior de determinado modelo – o que ela não consegue fazer. “Nem adianta encomendar, eu não dou conta. Eu não tenho mais condição de ficar fazendo muito porque cansa, o braço dói. Mas brinco dizendo que assim fica exclusivo, né?”, ri. Durante a pandemia, ela relembra que continuou a produtividade da mesma forma, e que as pessoas da fundação buscavam as peças na sua casa e vendiam através da janela do local. Em uma outra ocasião, também fez uma toalha para o altar da capela da Igreja de São Mateus de forma gratuita.

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(Foto: Arquivo pessoal)

Tecendo conhecimento

Tia Glorinha foi a única pessoa que Josélia conheceu que sabia fazer o frivolité. Com o tempo, no entanto, ela mesma passou a ensinar essa técnica para outras pessoas. Apesar de não aceitar encomendas, esse é o jeito que encontrou de fazer com que as pessoas possam ter frivolités em suas casas. “Mas como é difícil, tem gente que vem uma ou duas vezes e desiste”, conta. Para quem dedicou a vida a essa técnica, no entanto, quando encontra pessoas que querem mesmo aprender, é uma felicidade. A sua amiga Imaculada, por exemplo, passou a fazer muito bem, o que a deixou muito feliz.

Ela conta que, durante muito tempo, enquanto dava as aulas em sua casa, seu marido dizia: “Quem você está viciando agora?”. Para ela, essa técnica, que teve a origem incerta, mas que remete à França em seu período renascentista, se tornou até um verbo de viver: conta que está sempre ‘frivolitando’. “Eu não sei fazer crochê, não sei fazer tricô, bordado muito pouco. Sei isso e pronto. Não dá tempo de mais nada. Encontrei essa paixão”, afirma Josélia.

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli é uma repórter formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-graduanda em Escrita e Criação pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Escreve a coluna "Sem lenço, sem documento", que conta a história de artistas, artesãos e pessoas que trabalham com cultura em Juiz de Fora, mas que nem sempre são conhecidos pelo grande público. Também escreve matérias de cidade, educação, saúde, cultura e diversos outros temas. É autora do livro-reportagem "Do lado de fora: dez perfis de mulheres anônimas", escrito como Trabalho de Conclusão de Curso, e se interessa por jornalismo literário. No tempo livre, escreve e lê literatura, se interessa por produções audiovisuais, viaja, cuida de gatos e aprende línguas. [email protected] LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elisabetta-mazocoli/

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