Conheça Gabi Gonçalves: as mãos e a mente por trás da Maria Buzina

Na coluna "Sem lenço, sem documento" dessa semana, a artista plástica conta como usa lona de caminhão para "transformar histórias"

Por Elisabetta Mazocoli, sob supervisão do editor Marcos Araújo

Sem lenco Betta
Gabi Gonçalves é a artista responsável pela Maria Buzina, marca de bolsas feitas à mão, com lona de caminhão, que já existe há mais de duas décadas (Foto: Elisabetta Mazocoli)

Quando Gabi tinha vinte anos, não sabia ainda como cortar uma bolsa, onde encontrar couro para vender ou como unir tudo que queria fazer em uma peça só. Mas sabia uma coisa, que levou para todo o resto: que queria produzir arte para além das galerias, fazendo com que as pessoas pudessem carregar uma peça consigo e tivessem sua vida um pouco alterada por ela. Queria também encontrar o seu lugar no mundo, onde pudesse entender quem era, e, nesse processo, deixar as pessoas mais livres para que também se entendessem. Foi nessa época que surgiu a Maria Buzina, marca de bolsas feitas à mão, com lona de caminhão, que já existe há mais de duas décadas e continua conquistando mais clientes. Muita coisa mudou ao longo desse tempo, mas ela deixa claro que o desejo inicial permanece o mesmo – e que essa vontade se reflete em cada produto que faz.

Seu sonho de menina era ser independente e correu atrás disso logo que pôde. “Eu sou muito curiosa, tenho déficit de atenção e ansiedade, e eu queria me entender, porque tudo que eu fazia estava errado, tudo que eu falava estava errado, todas as minhas expressões eram entendidas como estranhas. Mas pra mim mesma estava tudo certo, e eu queria um lugar em que eu me sentisse segura”, diz. Gabi aprendeu tudo através dessa vontade incansável de se encontrar e de pertencer a algum lugar, que a fez correr atrás de conhecimento e de experiência. A ideia de transformação genuína que a arte proporciona, para ela, não podia ficar presa a um espaço a que nem todos têm acesso. Foi por isso que, ainda bem jovem, percebeu que uma peça de acessório podia expressar o que queria, ainda mais se fosse feita com uma intenção tão clara.

A primeira vez que teve contato com a lona de caminhão, o material com que ainda hoje trabalha, o que a atraiu foi justamente essa possibilidade de pegar um tecido que era descartado para transformar em algo atraente – e é assim que ela também enxerga que pode mudar as pessoas. “A lona de caminhão que eu uso nas minhas bolsas é toda remendada, manchada, marcada, e sei que as pessoas são assim também. Na minha ideia, se as pessoas conseguem reconhecer o valor de uma lona que seria jogada no lixo e que é transformada em uma peça que elas consideram bonita, atraente, interessante e com a qual se identificam, também conseguem olhar para si mesmas e reconhecer nas suas próprias marcas e remendas uma história”, diz. A lona, por toda essa bagagem, acaba também sendo difícil de lidar. Quando ela pega o material, são 90 metros quadrados bem sujos, que só perdem a utilidade para os caminhoneiros quando deixam de ser impermeáveis. É preciso cortar aquilo em pedaços e limpar bem dos dois lados.

Gabi sabe que fazer isso é cansativo, e que nem todo mundo é capaz de encontrar beleza logo assim. É por isso que mescla todas as peças com desenhos coloridos, retalhos, escritos e o que mais quiser: “Misturo, então, com a delicadeza do colorido desenhado à mão. Esses tecidinhos, por exemplo, corto um por um, escolho, desenho. Tem a preocupação com cada detalhe, que é totalmente diferente de um produto industrializado. E é muito bom ter algo que é feito pra você, que só você tem no mundo inteiro”, diz. A Maria Buzina é um reflexo claro de como ela também passou a se enxergar, com o tempo, e também com a confiança que passou a ter. “Enquanto estou trabalhando, estou pensando em mim, o que me faz estar fazendo isso dentro da minha história, e isso tudo faz com que a Maria Buzina faça sentido, porque esse é o meu produto, ele fala de mim. E eu preciso me entender para poder me expressar”, diz.

“Cuidado sempre”

A lona, além de ser um material com que ela aprendeu a lidar bem, também tem muito da sua própria história. Quando era criança, brincava sempre na oficina próxima de sua casa, no meio das ferrugens e de peças rígidas, e lá encontrou também uma parte de si, que não sabia nem como poderia canalizar. Seu avô era caminhoneiro, e hoje no seu ateliê, inclusive, Gabi usa como decoração a placa que ele tinha em seu caminhão: “Cuidado sempre: prevenir acidentes é dever de todos”. Entende que é uma forma de honrá-lo e transformar aquela história da família em algo belo.”A minha ideia era trazer a rusticidade da lona, que representa a vida dos caminhoneiros na estrada. É uma vida muito difícil, muito marginalizada, cercada de preconceitos”, diz.

Por isso, ela também gosta que as peças tragam mesmo as suas manchas, mofos, ferrugens – quanto mais usadas, mais interessantes podem ser, porque contam sobre o que aquelas pessoas viveram em seus caminhos. “Eles estão sempre longe das famílias, das pessoas, dos acontecimentos, porque estão sempre na estrada. Eles vão e não sabem quando vão voltar”, diz. A Maria Buzina, no entanto, fica. E não precisa “copiar modas, seguir tendências, fazer o que está todo mundo fazendo” para isso. Acredita que a criatividade pode mesmo surgir dos lugares menos olhados, menos valorizados para existir e florescer. “É você se arriscar, investir e acreditar. Se acha que aquilo é importante e faz sentido, é uma necessidade que você percebe. Então, vale a pena”, diz.

A vida que proporciona

Conforme foi crescendo nesse mercado, Gabi passou a exportar suas bolsas. Teve mais de 300 peças encomendadas pelos organizadores da Babilônia Feira Hype, vendeu três coleções inteiras para a Cantão e seguiu criando. Quando engravidou de sua segunda filha e depois que ela nasceu, estava trabalhando com dez funcionários em uma fábrica, onde comandava tudo. “Não conseguia ficar de repouso depois que elas nasceram, eu tinha que trabalhar. Eu ia trabalhar, sentia dor, sangrava, e aí o médico falava que tinha que ficar de repouso. E aí eu trabalhava deitada”, conta. Foi um estalo quando percebeu que precisava de uma mudança. “Comecei a pensar que não era essa a vida que queria. Desejava ser feliz, queria ser mãe, queria ver de perto minhas filhas crescendo”, diz.

Foi então que se mudou para o apartamento onde mora e no qual tem um cômodo dedicado ao seu ateliê. Passou a trabalhar com encomendas, dando conta de tudo sozinha e produzindo de forma livre quando sobra tempo. O que mais gosta hoje, no seu trabalho, é justamente a vida que ele proporciona. “Eu acordo, vou trabalhar, minhas filhas chegam da escola e eu estou fazendo almoço. A gente senta à mesa para almoçar juntas, conversamos, aprendemos uma com a outra. A gente se escuta, se aconselha, e elas me contam as coisas que acontecem no dia a dia delas”, explica. Percebe quando uma está triste, e elas percebem também tudo sobre a mãe.

Hoje, uma de suas filhas tem 14 anos e a outra 12, enquanto ela está com 42 anos. Sua história, no entanto, está longe de acabar, e por isso Gabi continua fazendo vários planos para o futuro. Se orgulha de ter conseguido a vida que tem agora, mesmo sem luxos e extravagâncias, porque vive de acordo com o que ela acredita e fazendo o que mais ama. “Até você entrar para o mercado e se solidificar, você é louca. Falam que não vai dar certo. Falam que ninguém faz isso. Mas é justamente porque ninguém faz o que eu quis fazer que eu acho que precisa ser feito. A arte é você inserir o que você acredita”, diz.

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