ConheƧa Crraudio: das margens ao Marginal Lab

Na coluna 'Sem lenƧo, sem documento' desta semana, conheƧa a histĆ³ria de Crraudio, DJ, produtor cultural e diretor de conteĆŗdo que tambĆ©m Ć© fundador do Makoomba e KaĆ“ Funk

Por Elisabetta Mazocoli

CRRAUDIOFOTO Joao Vitor 3
Em 2012, tornar-se DJ e produtor cultural foi algo que Crraudio percebeu que poderia mudar o cenĆ”rio cultural em Juiz de Fora. A aĆ§Ć£o, entretanto, foi sĆ³ uma consolidaĆ§Ć£o do que ele percebeu que gostava de fazer desde crianƧa: trabalhar com mĆŗsica (Foto: JoĆ£o Vitor)

Quando Claudio Jr. Ponciano comeƧou a ser conhecido como Crraudio, hĆ” 12 anos, enfrentava um dilema: nos bailes funks tradicionais, como pessoa LGBT, nĆ£o se sentia completamente Ć  vontade; nas festas voltadas para o pĆŗblico LGBT, nĆ£o havia espaƧo para o funk de que ele tanto gostava. Precisava de um terceiro lugar em que essas duas partes dele pudessem coexistir – e onde outras pessoas pudessem aproveitar e se expressar juntas. Foi assim que o jovem, nascido em UbĆ”, comeƧou a se engajar em movimentos que fizessem com que isso fosse possĆ­vel. Ao se mudar para Juiz de Fora, em 2012, tinha como missĆ£o “fazer a cidade ser legal” para ele. Desde entĆ£o, passou a trabalhar como DJ, produtor cultural e diretor de conteĆŗdo, e foi assim que, das margens de uma cultura popular, conseguiu abrir portas. AtĆ© que, este ano, enfim, vai poder inaugurar, com outros dois amigos, o Marginal Lab.

A histĆ³ria do DJ com a mĆŗsica comeƧou quando ele ainda era bem novo, a partir de um projeto social de musicalizaĆ§Ć£o do qual participou na infĆ¢ncia. Isso jĆ” tinha aberto os olhos dele para um caminho que continuaria mirando por muito tempo, e que, mesmo ainda crianƧa, jĆ” deixava marcas. “Descobri que um vizinho meu conseguia gravar CD no quintal dele. Pedi ajuda, porque queria ter as mĆŗsicas que tocavam nas festas de famĆ­lia em uma lista sĆ³”, conta Crraudio. Naquele momento, ele relembra que atĆ© mesmo o vizinho foi percebendo como o tipo de seleĆ§Ć£o que ele fazia era pensada com cuidado. Ainda hoje, aquilo de que ele mais gosta nessa arte Ć© justamente a possibilidade de contar histĆ³rias. “Estava numa festa, outro dia, e coloquei uma mĆŗsica do episĆ³dio 4 de X-Men 97. Ali da pista vi algumas pessoas se emocionando muito, trazendo memĆ³rias de volta e surpresas. Isso Ć© muito bom”, conta.

Quando entrou na faculdade para se tornar designer de produtos, ainda em UbĆ”, Crraudio comeƧou tambĆ©m a tocar em calouradas. “Sempre falo isso para os meus amigos ou pessoas que querem tocar. Testem junto Ć s pessoas que vocĆŖs amam, porque se vocĆŖ conseguir deixĆ”-las felizes, jĆ” mostra algo”, aconselha. Aquele momento foi importante para que ele conseguisse entender o que era o trabalho de DJ para fora das paredes do seu quarto, e nesse sentido, como entender o pĆŗblico e conseguir mexer com as emoƧƵes. Enquanto percebia o pĆŗblico de UbĆ” e ia criando oportunidades novas, foi tambĆ©m se aproximando de Juiz de Fora, atĆ© que se mudou para a cidade e comeƧou a trabalhar como social media e designer no CafĆ© Muzik.

Foi assim que Crraudio tambĆ©m foi conhecendo alguns de seus parceiros e inspiraƧƵes, como a MC Xuxu, cantora trans de funk da cidade, e que ele considera pioneira em tambĆ©m trazer esse protagonismo LGBT dentro do cenĆ”rio do pop e para este pĆŗblico. “A gente estĆ” aqui no Brasil, com uma influĆŖncia gigante de mĆŗsicas afrodiaspĆ³ricas, funk, reggaeton e todos os ritmos que nasceram a partir disso. (…) A gente vĆŖ muito mais disso agora, mas hĆ” oito anos era muito difĆ­cil. SĆ³ que a gente jĆ” acreditava que as pessoas iam gostar, porque a gente jĆ” gostava”, reflete, sobre essa vontade. O que parecia particular, no entanto, era coletivo, porque a cultura geral foi acompanhando esses esforƧos. “A gente nasceu junto com outros movimentos culturais, como Batekoo. Nessa mesma Ć©poca, BeyoncĆ© lanƧou o Lemonade, e acho que esse mundo pop foi percebendo que precisava de pessoas pretas. Hoje jĆ” estamos dentro desse imaginĆ”rio. Naquela Ć©poca, a gente estava desbravando”, diz.

Ɖ ‘Makoomba’ mesmo

A ideia de ter um espaƧo fĆ­sico ou metafĆ³rico que abraƧasse essa vontade foi se intensificando, atĆ© que, junto com Amanda Fie e Ocrioulo, criou o Makoomba. “Se nĆ£o estavam nos chamando, precisĆ”vamos criar um espaƧo”, diz. O projeto, que inicialmente era uma festa, foi incorporando as mĆŗsicas afrodiaspĆ³ricas, como funk e reggaeton, que eram ainda mais marginalizadas no momento em que a festa foi criada, em 2015. Com o tempo, no entanto, o projeto foi crescendo: “Toda vez que a gente pensava onde essa festa funcionaria melhor, era na rua. A rua Ć© o espaƧo mais democrĆ”tico e, como artista, estar na rua Ć© o melhor lugar, Ć© onde vocĆŖ mais consegue se conectar com as pessoas. Ɖ uma energia”. EntĆ£o, a festa virou um bloco de carnaval.

Para que fosse possĆ­vel reunir a quantidade de pessoas que o Makoomba consegue atualmente, no entanto, foi preciso enfrentar resistĆŖncia e ter paciĆŖncia. “Como eu sempre toquei mĆŗsica afrodiaspĆ³rica, que tem uma presenƧa forte de tambores, sempre tinha alguĆ©m que falava ‘nossa, isso parece mĆŗsica de macumba’. Aqueles comentĆ”rios que vĆŖm cheios de preconceito, nĆ©? Mas resolvemos assumir isso e ressignificar, como uma forma de dar a cara mesmo”, afirma Crraudio. Atualmente, considera que o projeto consegue, tanto pela vontade de seus idealizadores como pelo espaƧo que ocupam, mobilizar muito mais que sĆ³ uma parcela de uma comunidade. “A gente vĆŖ famĆ­lias, crianƧas, a juventude, pessoas mais velhas. Todo mundo danƧando junto, e danƧando funk, que Ć© algo que faz parte da nossa vida. Isso mudou a quĆ­mica do meu cĆ©rebro”, conta. Foi assim, tambĆ©m, que foi criado o KaĆ“ Funk, pelo mesmo grupo, que focou ainda mais no funk.

Abrindo portas e vindo junto com Crraudio

Logo no inĆ­cio da entrevista, Crraudio ressaltou que estĆ” passando por um momento de mudanƧas. Finalmente, aos 33 anos, sente que seus esforƧos estĆ£o se transformando em qualidade de vida e que pode dar ainda mais espaƧo para a sua vontade de criaĆ§Ć£o, inclusive porque o trabalho como diretor de conteĆŗdo tem possibilitado que use da linguagem que jĆ” tinha desenvolvido para trabalhar com grandes influenciadores. Um dos projetos que mostram isso Ć© o Baile do Futuro, que vem sendo realizado anualmente, e que funciona como uma residĆŖncia artĆ­stica para ensinar pessoas pretas e LGBTs o que Ć© produĆ§Ć£o. “Tudo que fez parte da nossa criaĆ§Ć£o a gente tenta passar para outras pessoas, para elas poderem ter algo que a gente nĆ£o teve, que Ć© outras pessoas ajudando nesse processo”, conta. Em sua vivĆŖncia, Ć© preciso sempre abrir esses outros espaƧos. “Ensinar para outras pessoas e abrir esses caminhos sĆ³ faz com que a comunidade em que vocĆŖ estĆ” inserido cresƧa. Conhecimento funciona rodando. Todas as vezes que faƧo residĆŖncia ou dou monitoria de discotecagem, aprendo muito”, diz.Ā 

AlĆ©m disso, a criaĆ§Ć£o do Marginal Lab consolida uma vontade tambĆ©m antiga, que era de ter o prĆ³prio espaƧo para conseguir experimentar. Crraudio Conta que recebeu a chave do local, que tambĆ©m estĆ” abrindo com Amanda Fie e JĆŗlio Piubello, nesta semana.”Vai ser nosso laboratĆ³rio de criaĆ§Ć£o. Acho que vai ser um catalisador muito legal, inclusive para aprender a ter essa gerĆŖncia. Estou muito empolgado, toda hora sonho se o pĆŗblico vai gostar. Vai ser algo novo para a gente”, diz Crraudio. O objetivo Ć© ter um gerenciamento horizontal, em que tanto os artistas residentes quanto os garƧons e responsĆ”veis pela limpeza tenham parte nos lucros. A intenĆ§Ć£o, como Crraudio diz, Ć© a mesma do comeƧo – tornar nĆ£o sĆ³ Juiz de Fora, quanto UbĆ” e o mundo, um lugar legal para pessoas como ele, em todos os sentidos diversos que isso tem.

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli Ć© uma repĆ³rter formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pĆ³s-graduanda em Escrita e CriaĆ§Ć£o pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Escreve a coluna "Sem lenƧo, sem documento", que conta a histĆ³ria de artistas, artesĆ£os e pessoas que trabalham com cultura em Juiz de Fora, mas que nem sempre sĆ£o conhecidos pelo grande pĆŗblico. TambĆ©m escreve matĆ©rias de cidade, educaĆ§Ć£o, saĆŗde, cultura e diversos outros temas. Ɖ autora do livro-reportagem "Do lado de fora: dez perfis de mulheres anĆ“nimas", escrito como Trabalho de ConclusĆ£o de Curso, e se interessa por jornalismo literĆ”rio. No tempo livre, escreve e lĆŖ literatura, se interessa por produƧƵes audiovisuais, viaja, cuida de gatos e aprende lĆ­nguas. [email protected] LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elisabetta-mazocoli/

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