Quando Claudio Jr. Ponciano comeƧou a ser conhecido como Crraudio, hĆ” 12 anos, enfrentava um dilema: nos bailes funks tradicionais, como pessoa LGBT, nĆ£o se sentia completamente Ć vontade; nas festas voltadas para o pĆŗblico LGBT, nĆ£o havia espaƧo para o funk de que ele tanto gostava. Precisava de um terceiro lugar em que essas duas partes dele pudessem coexistir – e onde outras pessoas pudessem aproveitar e se expressar juntas. Foi assim que o jovem, nascido em UbĆ”, comeƧou a se engajar em movimentos que fizessem com que isso fosse possĆvel. Ao se mudar para Juiz de Fora, em 2012, tinha como missĆ£o “fazer a cidade ser legal” para ele. Desde entĆ£o, passou a trabalhar como DJ, produtor cultural e diretor de conteĆŗdo, e foi assim que, das margens de uma cultura popular, conseguiu abrir portas. AtĆ© que, este ano, enfim, vai poder inaugurar, com outros dois amigos, o Marginal Lab.
A histĆ³ria do DJ com a mĆŗsica comeƧou quando ele ainda era bem novo, a partir de um projeto social de musicalizaĆ§Ć£o do qual participou na infĆ¢ncia. Isso jĆ” tinha aberto os olhos dele para um caminho que continuaria mirando por muito tempo, e que, mesmo ainda crianƧa, jĆ” deixava marcas. “Descobri que um vizinho meu conseguia gravar CD no quintal dele. Pedi ajuda, porque queria ter as mĆŗsicas que tocavam nas festas de famĆlia em uma lista sĆ³”, conta Crraudio. Naquele momento, ele relembra que atĆ© mesmo o vizinho foi percebendo como o tipo de seleĆ§Ć£o que ele fazia era pensada com cuidado. Ainda hoje, aquilo de que ele mais gosta nessa arte Ć© justamente a possibilidade de contar histĆ³rias. “Estava numa festa, outro dia, e coloquei uma mĆŗsica do episĆ³dio 4 de X-Men 97. Ali da pista vi algumas pessoas se emocionando muito, trazendo memĆ³rias de volta e surpresas. Isso Ć© muito bom”, conta.
Quando entrou na faculdade para se tornar designer de produtos, ainda em UbĆ”, Crraudio comeƧou tambĆ©m a tocar em calouradas. “Sempre falo isso para os meus amigos ou pessoas que querem tocar. Testem junto Ć s pessoas que vocĆŖs amam, porque se vocĆŖ conseguir deixĆ”-las felizes, jĆ” mostra algo”, aconselha. Aquele momento foi importante para que ele conseguisse entender o que era o trabalho de DJ para fora das paredes do seu quarto, e nesse sentido, como entender o pĆŗblico e conseguir mexer com as emoƧƵes. Enquanto percebia o pĆŗblico de UbĆ” e ia criando oportunidades novas, foi tambĆ©m se aproximando de Juiz de Fora, atĆ© que se mudou para a cidade e comeƧou a trabalhar como social media e designer no CafĆ© Muzik.
Foi assim que Crraudio tambĆ©m foi conhecendo alguns de seus parceiros e inspiraƧƵes, como a MC Xuxu, cantora trans de funk da cidade, e que ele considera pioneira em tambĆ©m trazer esse protagonismo LGBT dentro do cenĆ”rio do pop e para este pĆŗblico. “A gente estĆ” aqui no Brasil, com uma influĆŖncia gigante de mĆŗsicas afrodiaspĆ³ricas, funk, reggaeton e todos os ritmos que nasceram a partir disso. (…) A gente vĆŖ muito mais disso agora, mas hĆ” oito anos era muito difĆcil. SĆ³ que a gente jĆ” acreditava que as pessoas iam gostar, porque a gente jĆ” gostava”, reflete, sobre essa vontade. O que parecia particular, no entanto, era coletivo, porque a cultura geral foi acompanhando esses esforƧos. “A gente nasceu junto com outros movimentos culturais, como Batekoo. Nessa mesma Ć©poca, BeyoncĆ© lanƧou o Lemonade, e acho que esse mundo pop foi percebendo que precisava de pessoas pretas. Hoje jĆ” estamos dentro desse imaginĆ”rio. Naquela Ć©poca, a gente estava desbravando”, diz.
Ć ‘Makoomba’ mesmo
A ideia de ter um espaƧo fĆsico ou metafĆ³rico que abraƧasse essa vontade foi se intensificando, atĆ© que, junto com Amanda Fie e Ocrioulo, criou o Makoomba. “Se nĆ£o estavam nos chamando, precisĆ”vamos criar um espaƧo”, diz. O projeto, que inicialmente era uma festa, foi incorporando as mĆŗsicas afrodiaspĆ³ricas, como funk e reggaeton, que eram ainda mais marginalizadas no momento em que a festa foi criada, em 2015. Com o tempo, no entanto, o projeto foi crescendo: “Toda vez que a gente pensava onde essa festa funcionaria melhor, era na rua. A rua Ć© o espaƧo mais democrĆ”tico e, como artista, estar na rua Ć© o melhor lugar, Ć© onde vocĆŖ mais consegue se conectar com as pessoas. Ć uma energia”. EntĆ£o, a festa virou um bloco de carnaval.
Para que fosse possĆvel reunir a quantidade de pessoas que o Makoomba consegue atualmente, no entanto, foi preciso enfrentar resistĆŖncia e ter paciĆŖncia. “Como eu sempre toquei mĆŗsica afrodiaspĆ³rica, que tem uma presenƧa forte de tambores, sempre tinha alguĆ©m que falava ‘nossa, isso parece mĆŗsica de macumba’. Aqueles comentĆ”rios que vĆŖm cheios de preconceito, nĆ©? Mas resolvemos assumir isso e ressignificar, como uma forma de dar a cara mesmo”, afirma Crraudio. Atualmente, considera que o projeto consegue, tanto pela vontade de seus idealizadores como pelo espaƧo que ocupam, mobilizar muito mais que sĆ³ uma parcela de uma comunidade. “A gente vĆŖ famĆlias, crianƧas, a juventude, pessoas mais velhas. Todo mundo danƧando junto, e danƧando funk, que Ć© algo que faz parte da nossa vida. Isso mudou a quĆmica do meu cĆ©rebro”, conta. Foi assim, tambĆ©m, que foi criado o KaĆ“ Funk, pelo mesmo grupo, que focou ainda mais no funk.
Abrindo portas e vindo junto com Crraudio
Logo no inĆcio da entrevista, Crraudio ressaltou que estĆ” passando por um momento de mudanƧas. Finalmente, aos 33 anos, sente que seus esforƧos estĆ£o se transformando em qualidade de vida e que pode dar ainda mais espaƧo para a sua vontade de criaĆ§Ć£o, inclusive porque o trabalho como diretor de conteĆŗdo tem possibilitado que use da linguagem que jĆ” tinha desenvolvido para trabalhar com grandes influenciadores. Um dos projetos que mostram isso Ć© o Baile do Futuro, que vem sendo realizado anualmente, e que funciona como uma residĆŖncia artĆstica para ensinar pessoas pretas e LGBTs o que Ć© produĆ§Ć£o. “Tudo que fez parte da nossa criaĆ§Ć£o a gente tenta passar para outras pessoas, para elas poderem ter algo que a gente nĆ£o teve, que Ć© outras pessoas ajudando nesse processo”, conta. Em sua vivĆŖncia, Ć© preciso sempre abrir esses outros espaƧos. “Ensinar para outras pessoas e abrir esses caminhos sĆ³ faz com que a comunidade em que vocĆŖ estĆ” inserido cresƧa. Conhecimento funciona rodando. Todas as vezes que faƧo residĆŖncia ou dou monitoria de discotecagem, aprendo muito”, diz.Ā
AlĆ©m disso, a criaĆ§Ć£o do Marginal Lab consolida uma vontade tambĆ©m antiga, que era de ter o prĆ³prio espaƧo para conseguir experimentar. Crraudio Conta que recebeu a chave do local, que tambĆ©m estĆ” abrindo com Amanda Fie e JĆŗlio Piubello, nesta semana.”Vai ser nosso laboratĆ³rio de criaĆ§Ć£o. Acho que vai ser um catalisador muito legal, inclusive para aprender a ter essa gerĆŖncia. Estou muito empolgado, toda hora sonho se o pĆŗblico vai gostar. Vai ser algo novo para a gente”, diz Crraudio. O objetivo Ć© ter um gerenciamento horizontal, em que tanto os artistas residentes quanto os garƧons e responsĆ”veis pela limpeza tenham parte nos lucros. A intenĆ§Ć£o, como Crraudio diz, Ć© a mesma do comeƧo – tornar nĆ£o sĆ³ Juiz de Fora, quanto UbĆ” e o mundo, um lugar legal para pessoas como ele, em todos os sentidos diversos que isso tem.