‘Eu diria que crônica é meio como o jazz: algo sem fronteiras demarcadas’, aponta Eduardo Affonso

A jornalista Marisa Loures entrevista o cronista do jornal O Globo, Eduardo Affonso

Por Marisa Loures

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Colunista do jornal O Globo, o escritor Eduardo Affonso comanda oficina literária que resultou na coleção “Nuvens de palavras”, cujos volumes 5 e 6 serão lançados na Autoria Casa de Cultura – Foto: Marcus Pontes

É com a frase que abre a coluna de hoje – “Eu diria que crônica é meio como o jazz: algo sem fronteiras demarcadas”que o cronista do jornal O Globo, Eduardo Affonso, define o gênero que “está no detalhe, no mínimo, no escondido, naquilo que aos olhos comuns pode não significar nada”, como já afirmou o também cronista Joaquim Ferreira dos Santos. “Mas puxa uma palavra daqui, ‘uma reminiscência clássica dali’, e coloca-se de pé uma obra delicada de observação social.”

Affonso completa que a crônica é um gênero fluido. Isso porque, às vezes, flerta com o conto. Outras vezes, com a poesia. E, também, com o jornalismo. “Digamos que ela não seja o pássaro, mas o voo”, sentencia o escritor e arquiteto mineiro que, desde 2020, comanda a Oficina Literária Eduardo Affonso, projeto criado como resposta a leitores e leitoras que queriam conhecer um pouco mais o gênero que, no Brasil, usando as palavras de outro cronista, o belo-horizontino Humberto Werneck, “aclimatou-se melhor do que em qualquer outra parte do mundo.”

E desse curso literário, frequentado por escritores do país inteiro, nasceu a coleção “Nuvens de palavras” (320 páginas), com textos dos participantes da própria oficina. Em 2024, foram publicados os volumes 5 e 6, os quais serão lançados em Juiz de Fora, no dia 4 de outubro, às 18h, na Autoria Casa de Cultura. Entre os 61 autores, está a professora e teóloga juiz-forana Adriana Quinet.

Com organização de Affonso, “Nuvens de palavras” chega para nós, leitores e leitoras, trazendo uma diversidade de vozes. “Apresentam um vasto painel do que pode a crônica, como gênero literário. Sua versatilidade, sua capacidade de transitar pelo humor e pelo lirismo, pelo ensaístico e pelo confessional, de mesclar memória e imaginação (que não são territórios tão estanques). Trazem o olhar de pessoas de todos os cantos do país, das mais variadas profissões. De gente que tem livros publicados e de quem nunca pensou em se aventurar pelas letras.”

Marisa Loures – Gostaria que começasse esta entrevista apresentando o “Nuvens de palavras” para os leitores da coluna Sala de Leitura.

Eduardo Affonso – O projeto começou em 2020, como resposta ao interesse manifestado por muitos leitores em conhecer um pouco mais desse gênero tão popular no país, que é a crônica. Ela não foi inventada por nós, mas escritores como Rubem Braga, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Antônio Maria e Luís Fernando Verissimo fizeram dela algo que não deve nada à poesia, ao conto, ao romance. A crônica não deixou de ser a “literatura em mangas de camisa” ou “ao rés do chão” – mas fez disso o seu diferencial, buscando o deus das pequenas coisas, ou, me apropriando de um verso do poeta Manoel de Barros, as “grandezas do ínfimo”. Então, para compartilhar técnicas e estudar os grandes autores, foi criada a Oficina Literária, inicialmente conduzida em parceria com o cronista Carlos Eduardo Novaes. Em 2021 publicamos os “Nuvens de Palavras” 1 e 2, com as crônicas escritas pelos participantes das primeiras turmas, reunindo 36 autores, e com prefácio do Pedro Bial. Em 2023, saíram os volumes 3 e 4, com 42 autores, e prefácios do cronista Cássio Zanatta e da dramaturga Glória Perez. Agora, em 2024, vieram os volumes 5 e 6, com 61 cronistas, prefaciados pela romancista (e cronista) Martha Batalha e pela jornalista (e cronista) Cora Rónai.

– Em “Nuvens de palavras” há uma diversidade de estilos e vozes. Como essa variedade de abordagens enriquece a proposta do livro e o que você espera que os leitores sintam ao percorrê-lo?

Espero que se inspirem, se identifiquem, se sintam capazes de escrever também e de se expressar dessa forma tão despretensiosa e, ao mesmo tempo, tão elegante, refinada. Que percebam que a crônica é, literalmente, uma boa prosa. Uma conversa com o leitor, sem pedestais. Como faziam Carlos Drummond, Marina Colasanti, Cecília Meirelles, Adriana Falcão, Vinícius de Moraes.

– E, sempre que o assunto é crônica, não consigo deixar de mencionar Rubem Braga, um dos maiores cronistas do Brasil, cuja escrita repleta de lirismo influenciou muitos outros autores. Antes dele, escritores como José de Alencar e Machado de Assis também exploraram o gênero, mas com estilos que diferem do dele. Em “Nuvens de palavras”, há autores com estilos bem diferentes. E, no prefácio, Martha Batalha declara que, para ela, a crônica não morreu. Ela se adaptou. Diante disso, como você enxerga a crônica contemporânea? Quais características ela apresenta em comparação com as heranças literárias estabelecidas por Braga e seus antecessores?

A crônica contemporânea – muito bem representada por Joaquim Ferreira dos Santos, Léo Aversa, Antonio Prata, Ruy Castro, Gregório Duvivier, Martha Batalha, Cora Rónai, André Gabeh – mantém a tradição construída por Machado de Assis, João do Rio, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, Millôr Fernandes, Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto – e acrescenta um ritmo mais ágil, tão próprio do nosso tempo. Usa e abusa da intertextualidade, do diálogo com outras linguagens, com as transgressões naturais da língua falada. É mais livre, mais leve, mais solta.

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Entre os cronistas de “Nuvens de palavras”, está a professora e teóloga juiz-forana Adriana Quinet – Foto: Divulgação

– A crônica nasce de um instante, ela está diretamente ligada ao aqui e agora e, por isso, o melhor lugar para ela é o jornal. Ao levar crônicas para as páginas de um livro, é preciso ter o cuidado de selecionar aquelas que resistirão à passagem do tempo? Pergunto isso porque um texto pode ressoar profundamente hoje, mas perder sua relevância em um mês, por exemplo.

O Antonio Candido fala muito bem sobre isso. A crônica foi feita para ser impressa num papel que, no dia seguinte, iria embrulhar peixe na feira, forrar o chão da cozinha ou a gaiola do periquito. Não ia para a estante, não tinha a pretensão de viver mais que um dia. E, no entanto, pela qualidade, durou muito mais do que se imaginava. As ruas cuja alma foi retratada por João do Rio não existem mais – e, no entanto, o prazer em ler o que ele escreveu deve ser maior hoje do que quando ainda se podia flanar por elas. A ditadura militar já acabou, mas os textos do Ivan Lessa continuam arrebatadores. Uma ou outra coisa envelhece mal – mas isso acontece também no cinema, na pintura, na música, no romance. O que vai sobreviver e o que será merecidamente esquecido, só Chronos poderá dizer.

– “Nuvens de Palavras” é um livro que surgiu da Oficina Literária que você ministra. Existem críticas às oficinas de escrita, com alguns afirmando que elas podem restringir a autenticidade do autor, enquanto outros as defendem como fundamentais para estimular a criatividade. Já refletiu sobre essa questão?

Reflito sempre. E concluo que as oficinas que querem formar discípulos de determinado autor, ou ensinar fórmulas e formatos não têm como durar. Minha proposta é permitir que cada participante seja cada vez mais o que ele quer ser, que a oficina sirva para que encontre a melhor maneira de se expressar. Eu apenas proponho leituras, disponibilizo ferramentas, forneço recursos e estímulos. A partir daí, cada um encontra o próprio caminho.

– E como funciona a Oficina Literária Eduardo Affonso?

Temos reuniões semanais, de cerca de duas horas. São virtuais, mas ao vivo – nada é pré-gravado. A cada encontro, é proposta uma atividade, que pode ser técnica ou temática. Os textos produzidos são discutidos em grupo e comentados, individualmente. Diariamente um deles é postado na nossa página no Facebook (Oficina Literária Eduardo Affonso). Uma vez por ano, publicamos as “Nuvens de palavras”, que são uma coletânea representativa do estilo de cada autor. E, claro, fazemos grandes festas de lançamento, para que as pessoas que já se conhecem tão bem, através do que escrevem, possam também se encontrar pessoalmente, e para levar essa produção aos leitores. Neste ano, já foram feitos lançamentos no Rio e em São Paulo. Em outubro, será a vez de Juiz de Fora, Assis e Sorocaba, – e, possivelmente, em Porto Alegre.

– Você é mineiro. Tem alguma relação com Juiz de Fora?

Meu pai foi Juiz de Direito e Secretário da Fazenda em Juiz de Fora, e minha mãe se formou advogada no Instituto Vianna Junior. Tenho irmãos, sobrinhos e primos na cidade. Outros vínculos são a professora e teóloga juiz-forana Adriana Quinet, que participa do volume 5, e a arquiteta Marianna Oliveira, publicada no volume 2. O lançamento será no dia 4 de outubro, a partir das 18h, na Autoria Casa de Cultura. Uma boa oportunidade para promover o encontro entre quem escreve e quem gosta de ler.  E, para mim, mais uma chance de rever a cidade onde costumava passar férias, e que tem tantos laços com a literatura – Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Rubem Fonseca, Pedro Nava.

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Capas de “Nuvens de palavras”, volumes 5 e 6 – Foto: Divulgação

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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