‘A gente tem que falar da gente’

Por Marisa Loures

Márcia Falabella completa 31 anos de teatro e fala sobre  'Breviário de cena'
Márcia Falabella completa 31 anos de teatro e fala sobre ‘Breviário de cena’

Às vezes, a intenção pode ser se distanciar. Enlaçar palavras para escrever criticamente. Mas a vivência nos puxa para dentro da escrita. Foi assim que aconteceu com Márcia Falabella ao criar seu “Breviário de cena”, obra lançada em comemoração as suas três décadas de teatro. Período que se confunde com a história do grupo Divulgação, que completou 50 anos de estrada em 2016. “Não consigo falar de teatro sem me colocar, sem falar da minha experiência e, automaticamente, do Divulgação”, conta a atriz, que em março de 2017 celebra mais um ano dedicado aos palcos.

Para a confecção do livro, Márcia buscou 30 frases-epígrafes de diferentes atrizes, entre brasileiras e estrangeiras, que inspiraram sua caminhada. “Uma obra que se constrói pelo diálogo, ainda que silencioso, pessoal e unilateral, que travei com cada uma dessas artistas em algum momento. Elas me ensinaram um pouco mais do meu ofício e a cada uma delas dedico todo o meu carinho e admiração”, escreve ela, que fala poeticamente sobre sua arte com a mesma visceralidade com que viveu cada um de seus mais de 70 personagens. Sua escrita é emocionada e necessária. Como a própria autora afirma, ela faz da paixão o tempero das palavras.

“Num determinado momento em que escrevia, tive a sensação de que poderia ser um escrito de despedida. E se eu ficasse irremediavelmente doente, pensei. E se o teatro acabasse para mim… Não. O teatro é uma tatuagem na minha alma, uma pulsação infinda que orienta meu coração e acalenta meu espírito.”

Marisa Loures – Você teve que estabelecer limites, deixando algumas atrizes de fora do seu “Breviário”. Tem intenção de fazer outro livro?
Márcia Falabella – Acho que consegui com essas 30 frases mapear o universo teatral da maneira como eu queria. Falo sobre a ética do teatro, o que é teatro. Não passei por uma graduação formal. Minha experiência toda vem de cursos que fiz no Divulgação. São questões que vinham casando com o que eu queria dizer. Acho que prestei uma homenagem a uma determinada geração de atrizes, que, quando comecei a pensar em teatro, eram referência muito grande. Aí vi que ficou muita gente que merecia estar no livro e ficou de fora.

– A ideia inicial era manter um distanciamento e escrever criticamente sobre teatro. A paixão pela arte falou mais forte nessa hora?
– Quando pensei no livro, pegando as falas das atrizes, não pensei em falar da minha experiência. Mas, quando comecei a escrever, não conseguia falar de determinado assunto e não dar um exemplo do que eu já tinha vivido. Acho que acabava sendo muito mais próprio, muito mais verdadeiro. Então, decidi que perderia a vergonha de falar de mim e falar do Divulgação. Fiz uma oficina com uma atriz italiana que faz parte do Odin Teatret, de Eugenio Barba. Percebi que, quando ela falava do processo de criação, falava da companhia. E eu sou uma atriz de companhia. O teatro que eu faço é um teatro de grupo, então, enxerguei que a gente tem que falar da gente.

– Fica claro que você é uma atriz que pesquisa muito, que não se limita aos palcos. Você percorre as livrarias, compra os livros que encontra pela frente. Esse trabalho de pesquisa é imprescindível para o ator?
– O ator tem que se aprofundar na sua arte, que é um ofício. Não é qualquer coisa que a gente está fazendo. Brinco muito que, quando a gente entra em cena, não é igual a sentar num botequim para tomar cerveja. Embora seja uma festa, para pisar no palco da celebração, da festa, do sagrado, tem que ter respeito. Não que quem não tenha não vai subir ao palco. Mas acho que as pessoas acabam estacionando, e o teatro não estaciona. Vou muito ao Rio, que é o mais perto da gente, para assistir a peças, ver o que as pessoas estão fazendo, se tem algo novo, alguma pesquisa. Quando comecei, fiz o Curso de Introdução ao Teatro, a gente ouvia falar de pessoas do teatro sem nunca ter ouvido falar na vida. Aos poucos, vamos nos familiarizando. Como qualquer outra profissão, você tem que ter um conhecimento. Claro, eu considero que estou sempre aprendendo, que estou engatinhando, que preciso estudar muito mais. Como me divido em outras coisas, também não dá par ter tudo o que eu gostaria de ter, mas não paro, não quero parar, isso instiga a gente a crescer.

– Você citou uma frase da Meryl Streep que diz assim: “O mais difícil da carreira é ainda se surpreender e surpreender as outras pessoas.” Você diz também que essa é uma angústia de todo ator, mas, ao mesmo tempo, o grande barato da interpretação. Como viver essa ambiguidade?

– Acho que é sempre um recomeço. Tenho dois prêmios. Esses prêmios são ótimos, porque vieram de pessoas do teatro que olharam para o meu trabalho e falaram: “ah é legal”. Então há um reconhecimento, mas isso não garante que, no próximo papel que eu vá fazer, que eu vá conseguir um bom desempenho. Então, esse temor de que pode dar errado é sempre um frio na barriga, não tem fórmula. Isso depende da peça que se está fazendo, da personagem, das pessoas com as quais você está contracenando. Quem vai garantir que vai dar certo?

Neste ano, estou fazendo 31 anos de teatro, com mais de 70 peças, sendo que em algumas fiz mais de um personagem. Aí você fica assim: “como é que você descobre em você um caminho diferente, sabendo que temos limitações? Por exemplo, tenho um metro e meio, peso 60 quilos, tenho uma certa idade. Então, como eu faço para vencer todos esses pequenos obstáculos e recriar em cima disso? É uma angústia, mas, ao mesmo tempo, faz com que você não entre num círculo vicioso, numa coisa burocrática. Claro que ter essa trajetória me dá um suporte. Você entra em cena e já tem um arcabouço que te permite desenrolar com uma certa tranquilidade. Agora, cada espetáculo é um, cada público é um. A cortina se abre e você não sabe o que vai acontecer. Vai acabar a luz? Alguém vai cair? Alguém não vai te dar o texto? Você não vai dar o texto? Quantos milhões de coisas que podem acontecer no espetáculo? É diferente da TV e do cinema em que você tem a chance da correção. No teatro, você não tem isso. São os desafios que vão impulsionando a gente.

– Você diz que não traz verdades absolutas, que são suas verdades, aquilo que você viveu e aprendeu ao longo da caminhada. Diz que são verdades, não são certezas. A ideia é que suas verdades sejam um suporte para o ator iniciante?

– Como no Divulgação a gente tem sempre muita gente começando, achei que seria uma leitura interessante para as pessoas que quiserem ter uma dimensão da arte teatral. O meu caminho é um, meu caminho de formação vem do meu aprendizado com Zé Luiz (José Luiz Ribeiro) e com a Malu (Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro), sobretudo com o Zé, com quem convivo diariamente. Então, obviamente, sigo uma determinada linha, e o teatro é uma arte absolutamente generosa. Você tem “N” formas de fazer teatro. Fui por esse caminho, por isso falo que são as minhas verdades. A gente vai aprendendo outras coisas e também vai modificando a maneira de ver. O livro traz questões que eu pensava sobre teatro e que eu achava que pudesse, às vezes, clarear o caminho de alguém. Às vezes, na diferença, a pessoa também reflete. Ela não precisa concordar. Na discordância daquilo que estou dizendo, a pessoa acha outra coisa. Por isso, essa dialética é bastante interessante. Mas pensei também num livro que não fosse só para gente de teatro, porque qualquer pessoa pode ter tido a experiência de ter visto uma peça e pode ver os bastidores de como aquilo é feito.

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“Breviário de Cena”
Autora: Márcia Falabella
Motirô (210 páginas)

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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