Regina Zilberman organiza obra de crônicas judaicas de Moacyr Scliar

Por Marisa Loures

Moacyr Scliar põe sua escrita a serviço da cultura, da história e da memória do povo judeu (Foto de Lisette Guerra)
Moacyr Scliar põe sua escrita a serviço da cultura, da história e da memória do povo judeu (Foto de Lisette Guerra)

Fevereiro de 2011. Morre Moacyr Scliar, uma importante voz a serviço da cultura, da história e da memória do povo judaico. Abre-se uma lacuna na literatura brasileira. “Ele foi um escritor até os últimos dias, porque se manteve extremamente ativo o tempo todo”, conta a professora e escritora, Regina Zilberman, responsável por organizar, em livro, 68 crônicas que foram publicadas, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, dos anos 1970 até, praticamente, a véspera da morte do autor de mais de 80 livros, entre romances, contos, ensaios, ficção infantojuvenil e crônicas. “A nossa frágil condição humana” (Companhia das Letras, 216 páginas) reafirma o compromisso daquele jovem judeu com a comunidade judaica.

“É claro que minha posição é parcial. Porque, além de estudar a obra do Moacyr, acompanhei a trajetória dele. Ele era um grande amigo meu, uma pessoa que eu admirava muito. Então, a gente sente essa falta, mas acho que existe outra falta e que é muito importante. É a posição do intelectual judeu que não é partidário e que examina questões que têm a ver com o Brasil também. O Brasil não está fora dessa questão político mundial. Ele via daqui do nosso país um problema que se passava a distância e que repercutia na nossa vida cotidiana. Acho que isso faz falta. É uma posição que ainda não foi preenchida. Espero que seja”, avalia a estudiosa, que selecionou cinco textos dedicados à literatura, 12 ao antissemitismo e 51 à política de Israel e dos países árabes.

Como é próprio do gênero crônica, em “A nossa frágil condição humana”, temos um autor com uma escrita leve, simples, como se estivesse numa roda de conversa com o leitor. Chama atenção a atitude ponderada e lúcida de Scliar, mesmo diante de temas tão delicados e dolorosos. “Resistir é um imperativo. Resistir, como o demonstrou Gandhi, não tem necessariamente a conotação de luta, muito menos de luta armada. Manter a honestidade onde impera a safadeza, a dignidade onde impera a subserviência; ser justo quando a tentação é ser injusto, eis aí o que significa resistir”, escreveu ele em “Uma lição para todos nós”, de abril de 1982.

A obra ganha as prateleiras no ano em que se celebram os 80 anos de Moacyr Scliar. De acordo com Regina, com coordenação da viúva do escritor, Judith Scliar, até o fim de 2017, haverá uma vasta programação comemorativa, com ciclos de cinema, republicação de uma série de crônicas sobre Porto Alegre e reapresentação da peça “A mulher que escreveu a bíblia”, baseada no romance do escritor. “Ela vai procurar manter 2017 como um ano dedicado à leitura e difusão da obra de Scliar.”

Moacyr Scliar: Resistir é um imperativo. Resistir, como o demonstrou Gandhi, não tem necessariamente a conotação de luta, muito menos de luta armada. Manter a honestidade onde impera a safadeza, a dignidade onde impera a subserviência; ser justo quando a tentação é ser injusto, eis aí o que significa resistir

 

Marisa Loures – No prefácio, você diz que as 68 crônicas podem ser divididas em três grupos. Cinco são dedicadas à literatura, 12 ao antissemitismo e 51 à política de Israel e dos países árabes.  Essa divisão reflete o que Scliar mais produziu?

Regina Zilberman – Acho muito oportuno esclarecer isso. Realmente, na ficção, o Moacyr tratou de temas relacionados à imigração judaica, à primeira geração de judeus brasileiros, à instalação no país, aos problemas psicológicos, morais e econômicos vividos por esse contingente de pessoas. Alguns romances tratam de temas da bíblia, como “A mulher que escreveu a bíblia” e “Os vendilhões do templo”, mas o tema político que predomina nas crônicas não havia sido reunido.  Essa era uma preocupação constante do Moacyr e, além disso, a empresa jornalística confiava muito na opinião dele sobre essas questões relativas a Israel, aos palestinos, à crise no Oriente Médio, à vida cotidiana em Israel, etc. Mas esse núcleo de texto realmente estava disperso. Não que a gente não soubesse das preocupações políticas, mas elas vão aparecer efetivamente nesta obra. É ali que ele vai mostrar, inclusive, sua posição muito ponderada, muito lúcida em relação a um conflito que não parece se solucionar tão cedo. Se ele continuasse vivo, ele continuaria examinando, opinando sobre o que está acontecendo no Oriente Médio.

 

 

Regina Zilberman selecionou 68 crônicas de Scliar publicadas, originalmente, na imprensa
Regina Zilberman selecionou 68 crônicas de Scliar publicadas, originalmente, na imprensa

– Quando a gente lê crônicas como “A nostalgia de Hitler”, escrita no início da década de 1970, a gente vê um escritor preocupado com um nazismo que ainda existe, muito ponderado, mas que não se cala diante da situação…

– Exatamente. Ele não vai ser agressivo em relação a um assunto tão candente, que emociona tanto, mas vai dar sua opinião. Ele vai examinar, vai procurar explicar e vai se posicionar. E isso em relação a questões, como o ressurgimento do nazismo, que a gente vê a cada momento. Esse é um dos textos mais antigos, mas é uma das questões mais atuais. E também em relação a situações humanas, pessoais. A questão de casamentos entre etnias diferentes em Israel, em relação ao caso do rabino Henry Sobel, que, aliás, é a crônica que dá titulo ao livro. Aquele rabino que foi tão importante na luta contra a ditadura e que, depois, foi pego numa situação tão constrangedora em Miami. E essa lucidez dele, essa humanidade, inclusive, é que mostra quem foi o Moacyr como intelectual e como ser humano.

 

– E nas crônicas mais recentes, ele via uma luz no fim do túnel em relação ao nazismo?

– Se não era uma luz muito próxima, muito concreta, pelo menos era uma esperança. Procurei salientar, na apresentação do livro, a quantidade de vezes em que a palavra “paz” está presente nos títulos, e essa luz no fim do túnel é a paz. Não tem que ter a supremacia de uma nação sobre a outra, de um povo sobre o outro. Tem que haver uma harmonia, e harmonia significa cada um ceder um pouco. Essa é que parece ser a posição do Moacyr e que eu acho que tem de ser de todo mundo. Do contrário, não se constrói nenhum tipo de sociedade justa.

Regina Zilberman: Não tem que ter a supremacia de uma nação sobre a outra, de um povo sobre o outro. Tem que haver uma harmonia, e harmonia significa cada um ceder um pouco. Essa é que parece ser a posição do Moacyr e que eu acho que tem de ser de todo mundo. Do contrário, não se constrói nenhum tipo de sociedade justa

 

– Entre tantas crônicas, por que “A nossa frágil condição humana” foi escolhida para dar título a este livro?

– Escolher um título é difícil. Eu gosto dessa frase, em primeiro lugar. Em segundo lugar, acho que ela transcende a situação histórica, política e étnica que ele está examinando no livro. Ele está vendo a condição judaica não apenas pelo lado judaico. Ela faz parte da nossa situação humana, é um problema com o qual todos estamos envolvidos, e o título procura salientar isso. Não é um livro de judeu para judeu, é um livro de um ser humano para todos os seres humanos , que é também uma condição histórica, política, é social, é de gênero, é étnica.

 

– Em uma das crônicas, Scliar define Kafka da seguinte forma: “Kafka é judeu, sim, admite-o; Mas não é um membro da comunidade judaica, não freqüenta sinagogas, não constitui família judaica.” E como era o judeu Moacyr Scliar?

– O Moacyr não era exatamente esse judeu como foi o Kafka, porque o Kafka. Mas tem muito do kafka no Moacyr. O Moacyr também era um judeu, mas não era um homem religioso. Respeitava, como todo mundo respeita, datas festivas, mas ele não era um ortodoxo. Ele também escreve sobre temas judaicos e não judaicos. Ele não está obrigado a escrever só sobre a questão rio-grandense, porto-alegrense ou judaica. Ele tem temas amplos.  Sobre esse aspecto, ele também compartilha com Kafka essa universalidade, que transparece nessa frase citada por você.

 

– O Scliar escreveu um livro sobre o humor judaico. Inclusive, em algumas das crônicas, a gente percebe uma certa ironia, um certo humor. Qual é a principal característica  desse humor judaico?

– Uma das crônicas, “Do Éden ao divã”, fala exatamente sobre isso. É uma crônica, mas também um anúncio de um livro que ele organizou, de humor judaico, e que até vai ser relançado. A viúva do Moacyr, a Judith Scliar, está organizando o espólio, e fez um contrato com a Companhia das Letras para relançá-lo. Quanto ao humor judaico, realmente ele aponta como uma marca da cultura hebraica a propensão à ironia, ao humor, ao sorriso um pouco amargo. No Moacyr isso está presente, mas não é sempre. Ele não é um humorista como o Luis Fernando Veríssimo, para citar outro escritor do Rio Grande do Sul. Ele não faz aquele humor da piada, da anedota, da gargalhada. É uma ironia fina, às vezes com alguma amargura, porque ele também não quer que o leitor, diante desse humor, se desconcentre do problema. Muito pelo contrário. Ele quer a atenção dele. Esse humor do Moacyr é muito peculiar. Às vezes, nem tem muita graça, para dizer a verdade. Não é para achar graça, é para refletir.

 

a nossa frágil condição humana

“A nossa frágil condição humana”

Autor: Moacyr Scliar

Editora: Companhia das Letras (216 páginas)

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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