Adriano Moura: ‘Falo da inocência dos que não puderam falar’

Sala de Leitura entrevista o escritor Adriano Moura

Por Marisa Loures

Adriano Moura
Em “A inocência dos mortos”, Adriano Moura conta a história de um escritor que encontra um diário e, a partir dele e de suas memórias, decide investigar a morte de um amigo que fora assassinado por ser transgênero. Sexualidade, política, racismo e homofobia são temas que atravessam a obra(Foto Divulgação)

Na orelha, o jornalista, editor e agente literário, Gael Fernandes, apresenta informações a respeito do livro que tenho em mãos. Mas um dado curioso chama atenção: lá consta que ele é agente literário não do autor daquela obra, mas de Antônio Prustiano, o narrador, escritor e protagonista da história que lerei. Quando abro a publicação, quem assina o “Quase prefácio” é Cláudio do Carmo Abdias, professor de biologia e amigo de Antônio.

Escrevo sobre “A inocência dos mortos” (Patuá), de Adriano Moura. Nascida a partir de um texto premiado no concurso de contos “Um olhar sobre o amanhã”, do governo do Estado do Rio de Janeiro, a nova criação desse autor de Campos dos Goytacazes, doutor em Estudos Literários pela UFJF, tem como personagem principal um escritor que encontra um diário e, a partir dele e de suas memórias, decide investigar a morte de um amigo de infância que fora assassinado por ser transgênero. O objetivo dele é escrever um livro, cujo pano de fundo são episódios que marcaram as últimas quatro décadas do Brasil. E, para contar essa história, Adriano explora gêneros, como memória, diário, poesia e metaficção.

“Racismo, homofobia, transfobia são questões que nos atravessam e que despertaram em mim a necessidade de contar uma história sob as perspectivas de personagens que não só são afetados por essas questões, mas que decidiram escrever sobre elas, seja como memórias ou diário. Há fatos e pessoas reais na história, porém ficcionalizadas. Houve de fato um assassinato em Campos, onde a história ocorre, em circunstâncias semelhantes à do livro. Por trás de toda história de ficção, há a memória de algo que realmente aconteceu”, destaca o autor.

No próximo dia 12, às 19h, Adriano Moura vai participar do projeto Cerveja Literária, no Bar Reza Forte. Trata-se de um projeto itinerante, que objetiva levar conversas sobre literatura a bares e restaurantes. Na edição de Juiz de Fora, será abordado o papel da ficção como forma de escrever a realidade, com questionamentos acerca das fronteiras entre realidade e ficção. A conversa terá como mote o livro “A inocência dos mortos”, além de outras obras. No decorrer do bate-papo, o autor irá ler trechos do seu novo romance.

Capa do livro

– Por que “A inocência dos mortos” nasce neste momento?
-Saímos de uma pandemia que ceifou milhares de vidas inocentes. O Brasil é um dos países que mais mata pessoas LGBT e onde o racismo, herança da nossa colonização, é um problema ainda não resolvido (e não será em curto prazo), embora ainda haja quem defenda o mito da democracia racial. A literatura sempre aborda temas do tempo, espaço e sociedade que a produz. Nunca com o intuito de dar respostas, mas a fim de interrogar o leitor e o presente que marca sua existência e a do mundo a sua volta. Falo da inocência dos que não puderam falar, dos que foram arrastados pela morte por habitarem uma sociedade à beira de falência civilizatória.

-Você me disse, certa vez, que sempre se arriscou com seus textos: “Para cada obra que escrevo, tento experimentar gêneros e linguagens”. E, em “A inocência dos mortos”, há uma mistura de diferentes gêneros narrativos. Como foi esse processo criativo?
-O romance nasceu como um conto. A segunda parte é escrita em forma de diário, os escritos da transexual assassinada, Esther. A terceira parte se aproxima de uma narrativa de investigação policial. Tento fazer da narrativa um devir. Em vez de elaborar um processo criativo, deixo o processo simplesmente ser/acontecer. A realidade é o que acontece a todo momento e, assim como o tempo, é inapreensível; portanto dela só nos resta a ficção. Nada é realidade depois do acontecimento. Escrever a realidade é muito mais do que recriar. É inventar uma outra a partir de fatos que a gente acha que aconteceram tal qual testemunhamos. Permitir que o personagem fale por si é um dos maiores desafios de quem escreve um romance. Assim foi grande parte do processo de escrita do livro.

-Quando Antônio procura Everson e diz que quer contar a história do Gilberto, que foi assassinado por homofobia, ele diz que quer escrever não a história de verdade, mas uma obra de ficção. Isso é exatamente o que você faz. Escreve um livro que escancara a realidade, fazendo-nos refletir sobre temas urgentes, como sexualidade, racismo e homofobia, mas faz isso por meio da ficção. Por que falar verdades por meio da ficção?
-Porque a ficção desnuda a realidade e permite que ela seja vista por diferentes ângulos. É comum pensarmos que ficção não é uma verdade. É. Porém trata-se da verdade escrita sob a capa da invenção. A verdade sobre o que ocorreu nos países africanos durante a colonização portuguesa foi encoberta durante décadas. Documentos e imprensa oficial mentiam sobre o que os portugueses faziam em países como Angola. Os ficcionistas, dentre eles o romancista António Lobo Antunes, foram os que, por meio da ficção, escreveram a verdade. Ou seja, a realidade inventada foi que expôs a verdade.

-O prefaciador diz que “a literatura de Antônio, assim como os sujeitos pós-modernos, vive a crise de identidade não mais ancorada em modelos unificados conforme o pensamento iluminista, segundo escreveu o filósofo Stuart Hall.” Essa seria a literatura de Antônio Prustiano? Ou a de Adriano Moura?
-Não é a de Antônio Prustiano nem de Adriano. É a de qualquer pessoa que se proponha a narrar escrita ou oralmente, com fins literários ou não. As âncoras nas quais nos agarramos até o final do século XIX afundaram no oceano da História. Gênero, raça, classe, território, religião são conceitos cada vez mais difíceis de se definir a partir de algum paradigma. Assumir isso significa perceber o quanto o entendimento de que deveríamos nos preocupar menos em nos circunscrever em identidades homogeneizantes e permitirmos que nossa existência seja marcada pelo que construímos cotidianamente em interação com o outro, não somente humano, é essencial para viver livres das ansiedades causadas pela ideia previsível de identidade. Viver é um barco à deriva. É desesperador. Mas é o que é.

-Por falar nisso, sabemos que a literatura contemporânea é heterogênea. Como você se vê e se coloca nesse vasto campo da literatura brasileira?
-Me vejo como um autor ainda em busca de sua própria voz. Não temos mais as amarras dos estilos de época, porém estamos cada vez mais cerceados por ideologias que insistem em ditar normas temáticas e estéticas, tentando impor à literatura um discurso que agrade a A ou B, e que desagrade C. Tento escrever sem me prender a isso, embora às vezes possa não parecer. Escrevo sobre o que quero, quando quero e como eu quero. O contemporâneo, pensando a partir do que propõe o filósofo Giorgio Agamben, implica não aderência a seu tempo, desprender-se dele para enxergar o que há de mais obscuro. Não chego a ter essa pretensão, porém procuro ao máximo me permitir trafegar na escuridão do tempo em que vivo, tendo a escrita como luminária. Resumindo: não me coloco no vasto campo da literatura brasileira, pois esse campo é um território onde se colocar significa imobilidade. Não me coloco, transito e experimento, correndo o risco do imprevisível.

-“A inocência dos mortos” começa com as reminiscências do narrador. As lembranças são tão importantes para ele, que ele chega a dizer que “não há solidão quando se tem memórias e é possível escrever sobre elas.” Para você, as memórias também são importantes? Você busca em suas memórias o que escreve?
-Somente a memória permite o exercício da escrita. Sem ela não há literatura, principalmente romance. Escrevemos sobre o que vimos, ouvimos, tocamos, cheiramos. O dragão fantástico que cospe fogo é o devir dragão das memórias de alguém. Todo autor fala um pouco de si quando escreve, mesmo quando se esforça para driblar o leitor e tentar afastar o personagem dele. Não tenho mais essa preocupação. O personagem é um devir do autor. Somos todos assassinos, amantes, traidores, ladrões, santos, anjos, bichos, plantas. Escrever é permitir que emerjam memórias até do que achamos que não vivemos. Mas está lá. Escrevemos também sobre as memórias dos outros, mesmo sem saber.

– Aliás, você vê relação do que lá está guardado com as demandas do contemporâneo?
Só o passado existe. Existiu. O segundo que passa já extingue o presente. O que a gente chama
de contemporâneo já é passado neste segundo em que digito. As demandas do que a gente chama
de contemporâneo são muito parecidas com as do que chamamos de passado, porém com outro
formato. Penso que uma das maiores demandas da humanidade atualmente é a aceitação do outro
tal qual ele é, o semelhante, porém diferente em termos de gênero, cor, sexualidade, classe, etnia,
território. Conviver pacificamente com o outro sempre foi um problema não resolvido desde a
existência dos primeiros seres humanos. Confundimos às vezes contemporâneo com presente. Há
autores do passado que são extremamente contemporâneos: Machado de Assis, Dostoiévski,
Sófocles, Shakespeare, pelo modo como entenderam a alma do mundo e descortinaram.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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