No primeiro dia do ano de 2023, tive a oportunidade de publicar neste mesmo espaço um texto intitulado “Para que nunca mais aconteça”. Minha intenção, ali, era convidar o leitor e a leitora a pensarem a importância de não repetirmos o grave erro do que chamo de ‘esquecimento deliberado’ em relação aos crimes humanitários praticados durante a ditadura civil/militar 1964-1985. Procurei mostrar como essa mentalidade (“o que passou, passou”) nos conduziu a Bolsonaro, que nos conduziu a mais violações humanitárias. Entretanto, há mais a dizer.
Viceja nesses dias um sensível clamor pela prisão de Jair Bolsonaro. A demanda é compreensível, dada a quantidade (e qualidade) de crimes que lhe são atribuídos por ocasião de sua gestão – que se somam a tantos outros anteriores à sua desastrosa passagem pelo Planalto. Todavia, a obsessão por essa prisão guarda perigos que não podem ser desprezados.
Se o fortalecimento da democracia é o que se almeja, é fundamental que resistamos ao ‘canto da sereia’, ou seja, às tentações autoritárias. A premência, o imediatismo e a urgência nunca foram boas aliadas de um sistema de justiça criminal instalado em democracia sólida.
Vale recordar que somos regidos pelo princípio constitucional da presunção (ou estado) de inocência (CR/88, art. 5º, LVII), segundo o qual ninguém há se ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Bem se sabe que o ex-presidente está envolvido em inúmeras questões criminais, sendo que a grande maioria delas está em fase inicial (investigação) e só recentemente foram enviadas à primeira instância por força do final de seu mandato.
Como qualquer cidadão, Jair Bolsonaro somente poderá ser preso (leia-se: punido) caso venha a ser condenado em grau definitivo pela Justiça, salvo se alguma exigência de natureza estritamente processual (exemplo: tentar destruir provas) torne necessária sua prisão preventiva, situação que é e deve ser excepcional.
A Lava Jato há de ter ensinado que, em democracia, não importa apenas processar, mas processar segundo o devido processo legal (nos sentidos formal e substantivo); não importa apenas punir, mas punir com legitimidade e respeito à Constituição.
Não se pode ‘lavajatizar’ o caso Bolsonaro, sob pena de se cometer um duplo erro histórico: reiterar em práticas que corrompem o devido processo legal (e que conduziram à anulação de inúmeros processos na Lava Jato) e, por conseguinte, deixarmos de fazer a necessária justiça transicional (e legítima) em relação aos crimes praticados pelo ex-presidente.
No processo penal democrático, os fins não justificam os meios. Se o ex-presidente precisa acertar as contas com tantas violações praticadas contra tantos seres humanos, isso há de ser feito com respeito à lei e à Constituição.
Portanto, em que pese Jair ser um entusiasta dos métodos inquisitórios e autoritários, ele também usufrui da prerrogativa democrática de somente ser preso nas estritas hipóteses e condições legais.