O sobe e desce das ladeiras e da vida de JĂșlio, o vendedor de cocadas
As andanças de JĂșlio, com seu carrinho de cocadas que cruza a cidade diariamente
“Ăta cocada boa! Gigante do Carioca!”, grita JĂșlio CĂ©sar Coelho de Paula, antes de bater trĂȘs vezes seguidas sobre o teto de aço de seu carrinho. Em seguida enumera as qualidades: cocadas de coco queimado, leite condensado, branca e maracujĂĄ. Todos os dias ele anda mais de 20km. Faça sol – e a pele queimada denuncia – ou faça chuva, quando veste uma capa. Desce e sobe morro. O chinelo nĂŁo dura mais de um mĂȘs. As rodas de seu carrinho, tambĂ©m. “Ando muito todo dia. Tanto que esse pĂ©, que quebrou num acidente de bicicleta, hĂĄ muito tempo, nĂŁo Ă© mais a mesma coisa e costuma doer demais. Tomo um Dorflex e vou. Ăs vezes adianta, Ă s vezes nĂŁo, mas eu continuo. Sigo sempre em frente.”
JĂșlio acorda junto com o sol, por volta das 5h30. E sai de casa em menos de uma hora. O carrinho fica guardado, por um aluguel de R$ 70, num galpĂŁo da Rua Fonseca Hermes, onde tambĂ©m fica o estoque de cocadas. “LĂĄ eu abasteço e acerto o que vendi”, explica ele, que costuma deixar o local por volta das 9h. Quando o carrinho jĂĄ estĂĄ com uma quantidade suficiente, que restou do dia anterior, sai mais cedo. Da Fonseca Hermes sobe atĂ© chegar Ă Rua Santo AntĂŽnio. Passa pelas ruas Luiz Perry, BarĂŁo de Cataguases e JoĂŁo Pinheiro. No Bairro Santa Catarina, para numa mercearia, onde ganha o cafĂ©, vende algumas cocadas e um certificado para concorrer a prĂȘmios.
Dali ele toma o rumo que previu no dia anterior. Segue para os bairros Vale do IpĂȘ e Democrata, ou para a Cidade Alta, atĂ© prĂłximo da UPA SĂŁo Pedro. Ou, ainda, para a Zona Sul, andando atĂ© o Santa CecĂlia. Trafega por calçadas ou na rua, prĂłximo ao meio-fio. NĂŁo corta caminho. Anda, anda e anda. O sol se pĂ”e e ele retorna.
Do Rio a Minas
O “s” chiado nĂŁo esconde: JĂșlio nasceu e cresceu em SĂŁo Gonçalo. “Minha mĂŁe faleceu quando eu tinha 6 anos de idade. Fui criado pelos meus avĂłs. Cheguei a viver com uma tia, porque meu pai nĂŁo podia cuidar da gente”, conta ele, que na adolescĂȘncia viveu por um curto perĂodo em Salvador, na Bahia. “Trabalhei no instituto de beleza da famĂlia Machado. Era office boy e fazia a limpeza”, lembra o homem de 46 anos, que tem dois irmĂŁos do casamento do pai com a mĂŁe. Do novo casamento do pai, tem irmĂŁos com os quais nĂŁo se relaciona. A escola, abandonou ainda na oitava sĂ©rie. “Meu avĂŽ, jĂĄ aposentado, vendia livros e eu o ajudava. TambĂ©m jĂĄ tive carteira assinada. Fui funcionĂĄrio do Sendas, do Dalla’s. Trabalhei em empresa de estacionamento, fui operador de caixa e supervisor. Aqui trabalhei numa lavanderia, numa faculdade e num estacionamento. Eu nĂŁo tinha muito juĂzo”, reconhece.
Do desalento Ă paixĂŁo
HĂĄ 15 anos JĂșlio despediu-se do avĂŽ. Anos depois a avĂł adoeceu. Ele fez as malas e mudou-se para Juiz de Fora. JĂĄ tinha vindo outras vezes, mas hĂĄ sete anos foi definitivo. “Eu jĂĄ tinha, no passado, morado com uma prima no Bairro Caiçaras, mas nĂŁo queria incomodar e, como tinha um dinheiro, fiquei em hotĂ©is populares do Centro. O dinheiro foi acabando e fui para o albergue. SaĂa de manhĂŁ e corria atrĂĄs de ganhar algum dinheiro durante o dia. Entrei em depressĂŁo, mas nĂŁo ficava parado. De lĂĄ para cĂĄ, a minha prima soube de mim e me levou para o Linhares, onde conheci uma senhora, minha avĂł de consideração. A gente apanhou muita amizade”, narra. Trabalhava o dia todo e, quando o sol se punha, ia para o bar. Estava desgostoso da vida, conta. Um dia acordou disposto a abandonar a vida. Saiu de casa e foi atĂ© uma lan house. Quando sentou diante do computador, resolveu abrir o chat de uma sala de bate-papo e conheceu Scheila. “Naquele dia resolvi dar uma chance para mim. Vai que dava certo. Comecei a conversar com ela e marcamos trĂȘs encontros. No quarto deu certo e nos conhecemos. Tive muitas paixĂ”es, mas nunca amei ninguĂ©m tanto quanto a amo”, diz sobre a mulher com quem deseja viver, ao lado da filha dela.
Do gelado ao doce
“Olha o picolĂ©”, gritava JĂșlio num passado jĂĄ distante nas ruas da cidade. Vendia picolĂ©, com o carrinho arrendado, mas durante o inverno passava muito aperto. A mesma empresa onde arrendava os picolĂ©s fornecia cocada. Passado o calor, hĂĄ pouco mais de trĂȘs anos, ele resolveu apostar no doce. “Quando o tempo estĂĄ ruim, a venda cai demais, pulo para o picolĂ© de novo”, diz. Em mĂ©dia, vende entre 80 e cem cocadas por dia. Quando as vendas estĂŁo muito boas, chegam a 130. Quando estĂĄ pĂ©ssima, nĂŁo passam de 30. O carrinho atual, cujas laterais comercializa como espaço para propagandas, ganhou de um desconhecido, que queria ajudar alguĂ©m, e uma cliente indicou JĂșlio. “Ganhei os R$ 550 do carrinho e mais um dinheiro para recomeçar”, conta ele, que acabou gastando o valor com exames da namorada, hoje adoecida. “A maioria das pessoas me tratam bem na rua”, garante o homem de cabelos e barba grisalhos, simpĂĄtico e conversador. A cocada Ă© mesmo boa?, pergunto. “NĂŁo comia, nĂŁo era nem fĂŁ, mas acabei gostando muito.”