A coragem de Nilson
As voltas com o lançamento de meu novo livro, Cova 312, tenho encarado uma maratona de viagens pelo país. O desembarque no Rio fazia parte do meu trajeto de volta para Juiz de Fora. Estava com tanta saudade de casa, além dos compromissos assumidos com o jornal, que passei correndo pelo saguão do Santos Dumont. Uma imagem, porém, desviou a minha atenção. Um homem negro, que imaginei ser conhecido pelos frequentadores do aeroporto, estava ajoelhado no chão engraxando o sapato dos passageiros. O cliente continuou digitando seu computador e nem perdeu seu precioso tempo para olhar quem estava ali lustrado o seu belo par. Jovem ainda para tamanha arrogância, olhava para cima como se estivesse no topo do mundo, incapaz de enxergar a pessoa que lhe servia. Na hora de pagar, ele jogou uma nota de R$ 10 no ar, para que o engraxate apanhasse o dinheiro no chão. Aquela cena me remeteu ao período da escravidão. Pensei em como, após mais de 120 anos da abolição, nós ainda podíamos nos comportar como Senhores de Engenho, capazes de acreditar que existem vidas que valem menos do que outras. Meu coração acelerou. Fiz um esforço mental para me acalmar e disse a mim mesma que não deveria arrumar confusão. Foi inútil. Estanquei no meio do saguão para observá-lo.
Vestido com uma surrada calça bege, trajava ainda uma camisa azul de manga comprida desalinhada, embora parte dela tivesse sido presa na calça. Por fora do colarinho da camisa havia uma gravata vermelha. Era como se ele tentasse, naquele ambiente de engravatados, causar boa impressão, pois também usava uma. Foi uma imagem dolorida. Então, me perguntei em silêncio, se aquele fosse um homem branco eu também me sentiria assim. Aí entendi que não há maior ou menor exclusão. Substantivo feminino, a exclusão não escolhe gênero, nem cor, porém é muito mais severa entre homens e mulheres afrodescentes, atingindo até os bem sucedidos. Daniel Alves, lateral do Barcelona, protagonizou em abril do ano passado uma importante cena de resistência ao descascar a banana lançada contra ele em pleno estádio, na Espanha, comer a fruta e chutar a bola, como se dissesse para os responsáveis por aquele ato – os torcedores do Villarreal – e para o mundo: “olha o que eu faço com o seu preconceito”.
Voltando ao engraxate, me aproximei dele. Me disse que se chamava Nilson e que aquele era o dia do aniversário de sua filha de 2 anos, a mais nova em uma prole de cinco. “Ontem, ela tomou mamadeira feita apenas de água e açúcar. A vida está difícil”, comentou. O trabalhador informal, que se apressou em dizer que também era garçom ou qualquer coisa que aparecesse, afirmou que era o seu retorno aos bicos depois de uma temporada no hospital. Soube, ainda, que ele tinha vindo de Nova Iguaçu (RJ), onde morava, para tentar conseguir voltar para casa com algum dinheiro. Não tive meios de confirmar suas informações, pois precisava seguir viagem.
Os reacionários de plantão vão dizer: pelo menos ele estava trabalhando e não roubando, a velha frase de quem criminaliza a pobreza. Trabalho e dignidade deveriam ser sinônimos, infelizmente não são. “É preciso ter coragem”, me disse, o engraxate, durante a nossa despedida no aeroporto. A frase dele ecoou na minha cabeça durante todo o trajeto para a minha terra natal. Desse encontro, nasceu esta coluna, que estreia hoje, e o desejo ainda maior de dar voz aos silenciados. Afinal, é preciso ter a coragem de Nilson.