IpĂȘ-amarelo
Embora raramente possa me render a ele, gosto do refĂșgio que a ignorĂąncia proporciona. NĂŁo a que se pauta pela recusa em entender as coisas e pessoas, ou de negar os fatos. Falo de um nĂŁo saber estratĂ©gico, que de forma alguma se confunde com a alienação ou o descaso. Um breve respiro no sufocamento de notĂcias, que sĂŁo na maioria esmagadora ruins, mesmo para quem insiste em ver o melhor do mundo a qualquer custo – certamente nĂŁo eu.
Dia desses, depois de muitos dias vendo a cidade sĂł pelas telas que cercam a gata e minha prĂłpria fuça em casa, saquei minha mĂĄscara, meu âalquinhoâ em gel e fui matar a saudade de asfalto sob meus tĂȘnis. Em uma boa hora de subidas e descidas por uma OlegĂĄrio com poucos pedestres, demorei a reconhecer sorrisos familiares sob mĂĄscaras; xinguei sob a minha quem estava com a cara descoberta; vi novos contornos da cidade, com estabelecimentos abrindo e tambĂ©m portas baixadas em definitivo.
Tenho pĂ©ssima memĂłria para dados, nĂșmeros e tudo que Ă© de alguma ordem da praticidade: preciso anotar com caneta ou em bytes antes que leve uma rasteira do tempo e tudo se esparrame de um jeito que eu nĂŁo possa juntar. Por outro lado, qualquer lembrança salpicada com um pouco de afeto – nem precisa de muito -, meu ou alheio, tende a ficar guardadinha no meu baĂș, pronta para reaparecer.
LĂĄ pelo Santa Helena, passei em frente a um prediozinho, desses de dois andares, com poucos apartamentos, divididos originalmente pela mesma familia. Lembrei-me de quando fui com o amigo Leo Costa fazer uma matĂ©ria sobre um senhor que havia plantado e cuidava, ele mesmo, de um ipĂȘ-amarelo em frente ao edifĂcio onde vivia, um desses de dois pavimentos.Â
Naquela tarde, ele mostrou um caderninho com fotos e registros feitos Ă mĂŁo sobre a vida da ĂĄrvore, que se confundia com a da famĂlia desde que passou a viver ali. Se nĂŁo me falha a memĂłria – mas relembro: ela tem esse horrĂvel hĂĄbito -, havia um quadro de pintura a Ăłleo ou uma fotografia de famĂlia com a copa toda florida. Como prega a boa mineiridade, nĂŁo saĂmos de lĂĄ sem um cafezinho e uns bons dedos de prosa. Dali nĂŁo saiu qualquer genialidade jornalĂstica, escrevi nada que as pessoas precisassem imprescindivelmente ler. Nenhuma notĂcia que transformasse alĂ©m de coraçÔes tocados por um farto ponto amarelo no meio da cidade e na vida de algumas pessoas.
Do meu passo mascarado pela OlegĂĄrio, vi que no lugar do ipĂȘ hĂĄ agora sĂł um quadrado cimentado. Seu cuidador tambĂ©m nĂŁo estava mais lĂĄ, o pequeno prĂ©dio tinha o portĂŁo e as janelas fechadas, e uma placa que confirmava ausĂȘncia: âVende-seâ. Num raio de segundo, pensei sobre o que teria acontecido: Quando Ă© que cortaram o ipĂȘ? TerĂĄ, de repente, caĂdo numa tempestade? Quem terĂĄ visto o outro partir, o senhor ou a ĂĄrvore? Quem Ă© que sabia de sua histĂłria compartilhada? Quem Ă© que vai se lembrar?
Logo parei de perguntar a mim mesma. Era uma das situaçÔes de que eu falava hå pouco. Qualquer resposta que a realidade traga hå de ser mais triste, ainda que só um pouco, que a ignorùncia: melhor não saber.