UniĆ£o dos povos
Naquela segunda cinza, fria e Ćŗmida, Fernanda, uma otimista inveterada, tinha acordado de ovo virado. Tudo bem. Era o recomeƧo dos dias Ćŗteis. E chovia aquela chuva fininha e que nĆ£o molha, tampouco deixa secar, tipo aquelas que caem o ano todo em PetrĆ³polis. Fez um tratado consigo: vou me permitir meia hora desse azedume fidazunha, e depois segue o baile. “Fidazunha”. Porque Fernanda era assim, quando ficava p*%$ta da vida nem xingava “pra nĆ£o atrair coisa ruim” – bem ao contrĆ”rio da interlocutora.
Saiu de casa e deu um “bom dia” na medida pros companheiros de elevador: nem muito seco, nem alegre demais pra uma eventual rabugice matinal alheia, compreensĆvel. “Bom dia”, um sorriso de lĆ”bios fechados e uma levantada de sobrancelha discreta. Ouviu grunhidos entre reviradas de olhos, com uma rĆ©plica entredentes de muita mĆ” vontade. Mas Fernandinha nĆ£o era de esmorecer. “Cada um com seus problemas”, pensou. E seguiu para o trabalho, onde repetiu a saudaĆ§Ć£o aos colegas de escritĆ³rio, obtendo como resposta somente o silĆŖncio de quem nem vira as caras da hipnose dos monitores de seus desktops jĆ” ultrapassados.
No almoƧo, foi a um restaurante na esquina da firma, um “pĆ© sujĆ£o” maneiro, com um PF bacana e um dono super gente boa. Tinha fila atĆ©. Claro, a comida era Ć³tima. JĆ” planejando a opĆ§Ć£o do dia que ia tomar com uma Coca normal de garrafa de vidro (“porque dane-se dieta, nĆ©?”, pensou), ia esperando, quando pensou alto, sem querer – porque odeia ser entrona: “Nossa, hoje sĆ³ tem rango bom no cardĆ”pio”. Bastou isso para causar uma inesperada ira dos outros que estavam na fila. Um “hunf” do senhorzinho da frente, um “afff” da adolescente que estava atrĆ”s e um pouco mais longe, teve certeza de escutar alguĆ©m dizer: “Putz, tem sempre uma mala pra puxar papo, nĆ© nĆ£o?”.
Foi aĆ o estopim de Fernanda. Com fome, levando sabe lĆ” qual patada daquela segunda-feira e com o dia ainda longe de acabar, pensou que toda essa gente com cara de fundilhos nĆ£o merecia seu benefĆcio da dĆŗvida. E entĆ£o virou uma demĆ“nia, igualzinha o povo que a cercava, descontando as mazelas da vida (que ok, nĆ£o sĆ£o poucas) em quem nada tinha a ver com isso: “Mas que bosta! Essa p**ra dessa fila nĆ£o anda nessa joƧa, nĆ£o, cacete?”, gritou uma transmutada e boca-suja Fernandinha, finalmente acolhida pela comunidade: “Que lixo de atendimento nessa espelunca!”, “E olha que a comida nem Ć© lĆ” essas coisas”, “NĆ£o volto nunca mais nessa m**da!”… foram alguns dos manifestos “solidĆ”rios” ao seu.
E concluiu, um tanto triste, que havia descoberto o infeliz segredo da uniĆ£o dos povos nestes tempos esquisitos. NĆ£o o diĆ”logo, a gentileza, ou mais longe ainda, o tal do amor, mas a grosseria.
Esta Ć© uma obra de ficĆ§Ć£o. Qualquer semelhanƧa com humores, patadas e desesperanƧas e desilusƵes da vida real terĆ” sido mera coincidĆŖncia.