Do lado de lá
Eu sempre tento falar aqui sobre o que une e agrega. Sobre empatia, enxergar-se na dor do outro. Tento falar sobre igualdade, em diversos níveis, e sobre, como disse na semana passada, o direito de não ser assassinado é inalienável e universal – e é o mínimo que se espera de nós como humanidade,embora estejamos falhando miseravelmente como tal. Escrevo incansavelmente sobre a luta diária de tornar-se mulher, pelo direito ao próprio corpo e à própria mente, e também por direitos e oportunidades iguais. Mas hoje não. Hoje quero segregar, traçar uma linha, criar uma fronteira, separar, dividir, distanciar.
Já há algum tempo (ousaria dizer alguns anos), acordamos – todos nós, por motivos diametralmente opostos – pelo menos algum dia da semana (ou vários) com um sapo entalado na garganta. Posso falar sobre quem fica do meu lado da linha: gente amarrada no poste, homem gozando em mulher dentro do ônibus (duas vezes), a população LGBT sendo violentada de mil formas, impeachment sem crime, ônibus baleado, execução por silenciamento (tiro na culatra) , abuso de poder e de autoridade, genocídio da população negra, criminalização da pobreza e a comemoração da prisão de um ex-presidente como se fosse o fim da corrupção no país, entre muitas, muitas outras desesperanças. Ah, claro, não podemos nos esquecer: a seção de comentários, uma amostra de pulsão de morte disponível em qualquer portal.
Sei que pra quem está do lado de lá também não deve estar fácil. Deve ser insuportável ver tantas vozes que historicamente foram silenciadas ecoando, e cada vez mais alto. Deve dar um medão de ver tantas minorias se empoderando, tanto quanto o ranço e as reviradas de olho só de ouvir a palavra empoderamento. Pois vai mais uma vez: em-po-de-ra-men-to. Esse caminho longo, árduo, porém irreversível que leva à emancipação individual, e também à consciência coletiva necessária para a superação da dependência social e da dominação política. Imagina se essa gente empoderada se liberta? Deve dar um pavor mesmo em quem se borra de medo de perder seus privilégios.
Se tenho uma certeza, é que as coisas ainda vão piorar muito. E quando o pau cantar, sei que vão tentar emplacar a máxima mambembe de “é hora de unir bandeiras e discursos”, “não é momento de segregação”, e o pleonasmo cara-de-pau “todos queremos um Brasil melhor.” Mas aí não. Quem está na banda de cá quer que o Brasil saia desse esgoto eterno em que se enfiou sim, é óbvio. Mas aqui não tem lugar pra fascista, racista, machista, classista e todos e quaisquer propagadores do ódio e da violência.
“Unir discurso” é o escambau, não marcharemos ao lado de opressores. Venceremos? Talvez não – desculpem, tenho andado pessimista. Mas se a derrota for consumada e os sonhos, enfim morrerem, seguirei firme na certeza de Darcy Ribeiro: “Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”