Outras ideias com Dagmar Renate Witt
Às vezes, é preciso ter outros olhos para reconhecer o que está logo ali. É necessário estar fora para enxergar o que está dentro. Ao me assentar à mesa de frente para Dagmar Renate Witt, reconheço a minha cidade em cores que já me acostumei a negligenciar. O que te trouxe aqui?, pergunto-lhe. “Apostei em Juiz de Fora”, responde a mulher de voz doce e português vacilante. “Nasci numa cidade chamada Herne, na Alemanha, que tem aproximadamente 500 mil habitantes e é extremamente industrial. Em 1989, mudei-me para o Brasil, depois de ter recebido um convite para trabalhar para uma empresa francesa com filial no país. Em algum momento de 1991, visitei Juiz de Fora e senti algo forte. Aqui tem uma luz diferente. Na época, morando em São Paulo, pensei que se fosse para sair da cidade grande, era onde gostaria de morar. O destino chamou, e meu ex-marido veio trabalhar em uma empresa local. Desde 2001 estou aqui”, conta.
Para ela, também foi preciso se afastar para tocar as próprias raízes. Hoje, aos 56 anos, a mulher encontrou o que a língua lhe impôs. “A língua atua dentro da gente. O alemão usa menos vogais, com isso parece quadrado, bravo. Cria-se, assim, nas crianças, outra anatomia, porque outros músculos estão sendo usados, o que, de alguma maneira, favorece a estrutura do pensar”, explica a professora de alemão. Dagmar dedica-se a aulas particulares, às cinco turmas do 1º ao 5º ano, da Paineira Escola Waldorf, e às duas turmas de descendentes de imigrantes alemães (até sexta geração), na Associação Cultural Brasil-Alemanha.
“É um resgate meu, porque imagino meus antepassados conterrâneos pegando um navio. Quando não morriam na fila, morriam no barco. Dos que chegavam, alguns não encontravam o que foi prometido. Toda a história, em parte muito sofrida, também tem a ver comigo”, diz, sorrindo, Dagmar.
Cachorro colorido
“Aqui me sinto em casa, me identifico com essa alegria de viver, com a maneira de sempre dar um jeito, sempre resolvendo sem estar presa a regulamentos”, responde Dagmar quando perguntada sobre os laços que constrói ao longo desses 26 anos. Recusando quaisquer rejeições e certa de ter fincado profundas raízes, ela ainda se vê num “entre lugar”. “Digo que sou um cachorro colorido, aquele que não existe. Estando na Alemanha, já não me sinto mais alemã. No Brasil, também não me sinto brasileira, mas minhas origens pulsam dentro de mim”, emociona-se.
João-bobo
Dos brasileiros, extraiu a alegria. Dos alemães, a objetividade. Diante das histórias dos dois países, construiu sua própria cartografia. “Na minha época, o ensino da história acabava com o início da Segunda Guerra. Até para nós, para os que não são da geração da guerra, ainda é difícil. Os alemães carregam muita culpa. Quando os alunos chegam a certa idade, sempre perguntam sobre Hitler. Esse é um capítulo negro no qual não se mexe. Nos últimos anos, mudou um pouco, até tiraram a parte do hino que diz ‘Alemanha, Alemanha, Alemanha sobre tudo’. Essa arrogância ninguém quer ouvir. Mesmo com a reunificação, essa resistência continua dentro das pessoas”, comenta, para logo ilustrar através da linguagem: “O joão-bobo, aquele boneco, no Brasil, simboliza uma pessoa teimosa. Na Alemanha, o mesmo brinquedo se chama ‘Boneco que sempre levanta'”. Como o brinquedo, a técnica em enfermagem que já passou por diferentes multinacionais em diversas funções também soube se levantar. Resistiu aos terríveis anos da Era Collor e também soube quando era a hora de seguir adiante sem o projeto da “alemã com um restaurante italiano no Brasil”. Hoje, com uma filha e no segundo casamento (seu marido é o fotógrafo Hiram Azevedo), Dagmar tem a certeza de que as tempestades sempre passam.
Um drink com Axl
Num dia, em viagem a Belo Horizonte, a trabalho, entrou no elevador de um hotel e encontrou algumas pessoas falando inglês. “Perguntei se poderia ajudá-las e um me questionou se eu era alemã. Falei que sim, e ele disse ser também. Perguntei o que faziam aqui, e eles contaram que estavam em turnê. ‘Você não conhece a gente?’, me perguntou um. Eu disse que não. ‘Sou o Axl Rose do Guns N’Roses’, ele falou. Não conhecia mesmo. ‘Tudo bem?’, perguntei, e ele disse que tentou comer um hambúrguer no McDonald’s, mas os fãs não deixaram. Pensei: ‘Nossa, eles devem ser muito famosos mesmo!’. E, então, ele me pediu para tomar uma cerveja com ele, ‘conversar normalmente, sem assédios'”, conta a mulher que fala quatro línguas (alemão, português, francês e inglês) e até hoje não virou fã de Axl. Dagmar, que prefere o calor ao frio, pode até não conhecer muito de rock, mas sabe muito bem sobre o lugar em que pisa.