O que os peixes têm a nos ensinar

Por Wendell Guiducci

No consultório de renomado médico de Juiz de Fora, tudo era branco. Seus cabelos eram brancos, bem como seu jaleco e as brilhantes facetas que cobrem seus dentes com finíssima camada de porcelana. As poltronas onde nos sentávamos eram brancas, as paredes brancas, o piso branco. Bem, talvez não fossem exatamente brancos. Talvez fossem “off-white”, que é um nome embestado para um branco que não é exatamente branco, pois tem ali umas subtonalidades puxando pra cor de palha de enrolar cigarro. Ou seja, um eufemismo para “encardido”. Menos os dentes do douto esculápio: ah, os dentes cintilavam como pó de pirlimpimpim que não leva a país mágico algum.

A única coisa que não era branca ou off-white naquele consultório era o imenso aquário que dividia o escritório e a área onde o médico realizava seus exames, composta por uma maca (branca), um armário (branco) e uma pia (branca). Naquele cenário glacial, as cores nadadeiras explodiam como um festival aquático de fogos. Pude reconhecer ali vários personagens do filme “Procurando Nemo”. Do Nemo em si, que é um peixe-palhaço, havia dois. Também havia um yellow tang, uma donzela-de-cauda-branca e, claro, um peixe-cirurgião, que no filme é a “marca” da amabilíssima Dory, a esquecida.

Eu estava ali no consultório como mero acompanhante. Enquanto meus ouvidos apanhavam ao longe coisas sobre proteínas beta-amiloide, klotho e RORB, meus olhos acompanhavam a vagabundagem dos peixes naquela enorme joia líquida, que irisava a luz monótona da sala. A turma do Nemo ia até a flor da água mordiscar as bolhinhas de ar que um pequeno compressor soprava, depois mergulhava até o fundo e vinha rente ao vidro da sua insuspeita prisão, exibindo suas cores que, ao vivo, pareciam mais fantásticas que na ficção do cinema. Depois fazia manobras ora lânguidas, ora frenéticas por entre os corais que adornavam o centro da gaiola aquática e talvez fossem verdadeiros, talvez apenas réplicas de resina. Não pude diferenciar e duvido que os internos tenham tido mais sucesso que eu.

Mas quem se importa? A grande vantagem de ser peixe talvez seja justamente o aspecto cognitivo. Embora seja mito aquela história da lembrança que se apaga em cinco segundos, que inspirou a personagem Dory – a ciência já comprovou que eles são dotados de alguma capacidade de aprendizado baseado em experiências prévias -, a memória dos peixes é relativamente curta. Peixe fica esperto com anzol e tubarão, rede e martim-pescador, mas não guarda rancor. O que passou, passou, e o futuro a Poseidon pertence: peixe não sofre de ansiedade pelo que está por vir. Peixe vive o momento: nada, faz piruetas submarinas, come bichinhos microscópicos e ração balanceada. Peixe não vai ao Google pesquisar o que são proteínas transportadoras de monoaminas.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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