Conheça DuCarmo: artista plástica com interesse social e professora de crianças

Na coluna ‘Sem lenço, sem documento’ desta semana, conheça a artista de 78 anos que trabalha com desenho

Por Elisabetta Mazocoli

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DuCarmo dá aula de desenho para crianças há mais de 40 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Maria do Carmo Barbosa me recebe em sua casa, em um prédio de elevador antigo. Não tem como falar com ela por WhatsaApp, porque seu celular também antigo não tem o aplicativo: é “brucutu”, como gosta de dizer. Sua casa vintage parece uma galeria: é repleta de quadros, a maioria pintados por ela, que atualmente está com 78 anos. São vários arquivos que ela guarda com desenhos de diferentes fases da vida, das centenas de alunos que já teve, dos trabalhos que desenvolveu com os mais variados materiais. Tudo reunido com organização e com capricho por ela. Na mesa da sala, DuCarmo, como é conhecida, conta que recebe os alunos, para os quais, há mais de 40 anos, ensina desenho e pintura. É também lá que faz seus trabalhos, os mais recentes voltados para crianças que estão exercendo trabalho infantil e para cenários de comida de rua em Juiz de Fora. 

A carreira de DuCarmo começou cedo, porque, como diz, já nasceu desenhando. Todos os seus irmãos também gostavam de arte, mas foi ela que desenvolveu uma dedicação maior à área, por enxergar que era esse recurso que a ajudava a ver de verdade as coisas ao seu redor. “A devoção que eu tenho pelo desenho é porque o planeta é muito bonito. E a arte está em tudo.”. E, durante toda essa jornada, na qual pintou de natureza morta ao Neymar, de membros do Supremo Tribunal Federal a mulheres do Demlurb, das quais virou amiga, foi justamente a arte com um viés social que despertou nela o maior interesse. “Eu tento ser o mais Portinari possível, ter essa liberdade, mas a gente tenta ser perfeito em tudo. Ele queria mostrar um Brasil que a gente não quer ver, e queria transformar o país.”

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Desenhos barraquinhas de cachorro quente e pipoqueiros buscam valorizar trabalhador (Foto: Arquivo pessoal)

Uma de suas obras que ficou mais conhecida é justamente a de um menino negro, uma criança que frequentou seu ateliê durante muitos anos. Às vezes, pedia comida, e ela conta que dava. Depois passou a chamá-lo para ser modelo também. “O Fabiano era uma gracinha. Meus amigos falavam: ‘Cuidado, ele pode ser pivete’. E eu falava: ‘Não é pivete, é um menino pobre’. O Brasil suja a mente da gente.” Essa foi uma das experiências que marcou o seu olhar, e fez com que quisesse retratar figuras invisibilizadas pela sociedade, como as crianças forçadas a trabalharem. “Vi uma criança falando que antes brincava, mas agora tem que trabalhar. Aquilo me marcou muito e quis levar pra arte. Minha arte é combativa.” Da mesma forma, passou a desenhar a comida de rua da cidade como uma forma de homenagear esses trabalhadores que, como ela destaca, enfrentam diversas dificuldades econômicas e precisam lutar pra sobreviver.

As preocupações de DuCarmo também se mostram diversas. Diz se incomodar com a possibilidade do Brasil “virar uma Venezuela” e também de como os algoritmos controlam o que ela pesquisa, de como as pessoas estão viciadas em celular e não se dedicam mais à importância da arte. Mas, sobretudo, se preocupa com a falta de oportunidade. “Se filho de coelho é coelhinho, filho de Deus tinha que ser deusinho. Mas nós estamos muito encapetadinhos. Eu sou implicante, ando brigando muito com meus amigos evangélicos, com os esquerdistas também. Todo mundo tá orando e o planeta está horrível.” 

Tudo pode ser arte

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Com materiais que encontra no lixo, Ducarmo também aprendeu a criar arte (Foto: Arquivo pessoal)

A casa de DuCarmo não é repleta só de telas tradicionais, mas de arte de todos os tipos. Além desses trabalhos, ela já desenvolveu também máscaras, durante a pandemia de Covid-19, de vários tamanhos, formatos e personagens; artesanato feito com lixo descartado, que transforma em estantes, geladeiras ou cenários inteiros; peças feitas com gaze e água molhada. Além disso, são desenhos que também usam materiais variados, como café ou carvão. 

Tendo sido ela mesma tão autodidata, entende que essa é uma oportunidade de ir mais fundo e enxergar a arte em coisas ordinárias, ajudando a transformar materiais que seriam descartados. Esse acervo, como conta, também guarda várias histórias de quando as obras foram feitas e de quem passou pela casa, para também aprender mais. Um dos seus projetos atuais, inclusive, é um livro que reúna a sua percepção sobre como seus alunos eram, quando tinham aulas com ela, junto com o depoimento deles, já tantos anos depois – muitos trabalhando na área e outros trabalhando em profissões diversas. Para ela, relembrar como essas crianças eram é muito importante.

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Quadro em que retratou Fabiano é o que está no canto superior esquerdo (Foto: Arquivo pessoal)

Contato com crianças 

O contato com as crianças, para DuCarmo, deu um sentido maior à vida: “Eu aprendi o que é doação. Como é importante essa troca”. E, por isso mesmo, fala que gosta de ser divertida, gosta de brincar com os alunos, de incentivá-los na arte. E gosta da sinceridade com a qual respondem a ela, a observam e a consideram analógica. “Teve um dia que fui com um menino de 7 anos, no Mergulhão, à noite, porque ele queria pintar aquilo. A mãe ficou esperando no carro e nós fomos.” Apesar de não ser mãe, ela entende que esses foram seus filhos, o legado que deixou.

Segue com muitas preocupações. Este ano, o menino do seu quadro mais conhecido, Fabiano, morreu. Ela diz que ele levou um tiro de policial, quando foi confundido com bandido. “Um dos outros meninos de rua de quem eu cuido foi que me falou. É uma história muito triste, mas ainda tento encontrar beleza”, diz.

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli

Elisabetta Mazocoli é uma repórter formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-graduanda em Escrita e Criação pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Escreve a coluna "Sem lenço, sem documento", que conta a história de artistas, artesãos e pessoas que trabalham com cultura em Juiz de Fora, mas que nem sempre são conhecidos pelo grande público. Também escreve matérias de cidade, educação, saúde, cultura e diversos outros temas. É autora do livro-reportagem "Do lado de fora: dez perfis de mulheres anônimas", escrito como Trabalho de Conclusão de Curso, e se interessa por jornalismo literário. No tempo livre, escreve e lê literatura, se interessa por produções audiovisuais, viaja, cuida de gatos e aprende línguas. [email protected] LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elisabetta-mazocoli/

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