Acordei, praguejei e não recomendo

Por Wendell Guiducci

Uns dias atrás eu tive uma semana de proletário daquelas. Pessoas que, como eu, vivem somente dos rendimentos do seu trabalho, entenderão perfeitamente o que digo com “daquelas”. São períodos em que parece haver trabalho demais para tempo de menos. E se estamos de acordo que trabalho é o que fazemos enquanto pensamos naquilo que gostaríamos de fazer, uma semana “daquelas” pode ser realmente infernal. Pois bem, foi em uma dessas semanas que certa madrugada acordei de sonhos inexistentes e, inadvertidamente, praguejei. Naquela hora sagrada, em que o silêncio permite aos mais atentos ouvir o estalar dos ossos do sol que se espreguiça, eu praguejei. Baixinho, mas praguejei. Laboriosos leitores: é algo que não recomendo.
Vamos ao motivo da minha solitária descompostura. Peço que considerem como uma mera descrição e não como justificativa. Eu havia acumulado uma certa quantidade de compromissos profissionais que dificilmente cumpriria em uma jornada salutar de labuta. Dessa forma, eu me organizei para trabalhar até uma da manhã, dormir e acordar às cinco para continuar o serviço e terminá-lo em tempo hábil, tendo assim desfrutado de umas boas quatro horas de sono. Assim o fiz. Ou quase. Fui dormir pouco depois de uma da manhã. Ao acordar, tateei no escuro em busca do celular e, enquanto o fazia, notei que não estava assim tão escuro. O sol ainda não havia botado sua cara para fora do mar de morros, mas o céu já se incendiara de púrpura. De alguma forma, eu me esquecera de ajustar o despertador. Eram cinco e quarenta e cinco quando eu praguejei.
Eu não me considero um homem supersticioso. Diferente do companheiro Sérgio Salimena, por exemplo, eu não escrevo nomes de jogadores de futebol do time adversário em papeizinhos bem pequenos e os lanço dentro do congelador para que joguem mal. Apenas fico com minha cerveja na frente do televisor e torço para que o Flamengo vença a outra equipe. Tenho sido feliz assim. Mas tenho para mim que aquilo que fazemos logo que acordamos tende a nos acompanhar pelo resto do dia. Por isso me pesou muito o fato de acordar sussurrando um “puta merda”. Peço perdão aos leitores, cuja sensibilidade não pretendo nem de longe ferir ao redigir impropérios, mas é preciso escrever antes com verdade do que com decoro, e o que disse foi precisamente isso: “puta merda”.
A jornada que se anunciava intensa desde a véspera ganhou contornos sombrios com o inesperado destempero verbal que sequer destinatário tinha, senão a situação em si. Aquilo me fez áspera companhia ao longo do dia, que venci – outro modo não estaria aqui escrevendo estas lamuriosas linhas. Gosto de acordar cedo justamente para não incorporar já na aurora a inescapável correria que se impõe sobre o dia de qualquer proletário. Antes que o dia engrene, quero ter tempo para ler umas dez páginas de “A Montanha Mágica” – e a esse ritmo terminar o livro de Thomas Mann lá em 2029. De tomar um banho demorado. Botar o pão de queijo no forno. A água para ferver. Porque amargo de manhã, só café presta.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka.Instagram: @delguiducci

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