Por pouco não tive que dormir fora de casa hoje, por causa de uma bendita chave perdida. E mais que descobrir o paradeiro do chaveiro, me aterrorizava a possibilidade de ter de escrever esta crônica em uma mesa que não fosse a minha. Entendam como rabugice, inabilidade de lidar com mudanças, incapacidade de adaptação, importa-me lá. Deve ser tudo verdade e que seja. Sou desses que funcionam melhor na rotina, que não gosta de surpresas, que abraça a dádiva do hábito. Um devoto da prática, enfim.
Ameaçado de não poder fazer o que quer que seja dentro da minha zona ritual, encrespo, admito. Faço o que tenho de fazer, mas vou lá aborrecido, carrancudo. Ora, cada qual tem o direito de ser impertinente com o que melhor lhe aprouver. Um pouco de ranhetice é normal e dir-se-á até saudável, por que não? Um cidadão não pode estar de bem o tempo todo, sob pena de cair na pasmaceira de uma infinita condição de indiferença.
Mas encontramos a tal chave e eu pude me sentar aqui na mesa em que gosto de trabalhar, acompanhado dos meus pais Aurélio e Aulete, sempre à mão. E uma vez desfeita a confusão das chaves, acomodado na minha cadeira, me dei conta do privilégio que reside nesse ato absolutamente ordinário. Enquanto eu me martirizava porque teria de ir excepcionalmente passar a noite na casa da sogra ou da vizinha por conta de uma chave extraviada, tinha gente no Rio Grande do Sul indo para a terceira semana dormindo em albergue sem saber se terá para onde voltar quando a água abaixar.
E não pouca gente: quase 600 mil pessoas – cuja última preocupação é uma crônica boboca – sem suas mesas preferidas, sem seus chuveiros, suas geladeiras e seus saleiros. E nem falo aqui daqueles que ficaram sem pai, sem mãe, sem irmão, sem filho. Penso naqueles que estão, agora enquanto escrevo, na boca da noite, sonhando com o dia em que poderão voltar a ter uma rotina, a se sentar em sua poltrona de estimação, a ir à padaria, a fritar um ovo em seu próprio fogão. Tudo que essas pessoas queriam era um “problema” como o meu.
Um problema como o meu