Nara Vidal lança novo romance, ‘Puro’
Em sua nova narrativa, a autora usa o movimento eugenista na década de 30 como ponto de partida para a ficção
Não estava nas páginas dos livros de História na escola, não era falado pelas pessoas ao seu redor na infância e nem contado explicitamente. Mas o movimento eugenista no Brasil aconteceu. A proposta de fazer com que a sociedade fosse cada vez mais ‘higienizada’ e que os problemas sociais e econômicos fossem resolvidos através da genética tinha como base ideias fortemente racistas e capacitistas. Esse é o ponto de partida que a escritora Nara Vidal usa para “Puro”, seu novo romance, que já havia sido publicado em Portugal e que é lançado no Brasil pela editora Todavia. A autora já venceu o Prêmio Oceanos e foi finalista do Jabuti e do Prêmio São Paulo de Literatura por obras como ‘Sorte’ e ‘Eva’. Nessa nova narrativa, faz uma polifonia de vozes para trazer à tona aquilo que não era dito, mas que deixou tantas marcas na história do país, e que ainda dialoga com o momento atual.
O romance se passa na década de 1930, em uma cidade fictícia chamada Santa Graça, em Minas Gerais. O local havia se tornado conhecido como “referência de virtude e limpeza no território nacional” através de projetos um tanto misteriosos. Na mesma cidade, meninos negros desaparecem e não são procurados, assim como mulheres negras parecem enfrentar uma epidemia de apendicite que as deixam inférteis. E o palco da história passa a ser uma rua onde vivem os principais personagens do romance: Lázaro, um adolescente que sonha em ser presidente; as três velhas que cuidam dele; Ícaro, um menino deficiente que é totalmente excluído da vida em sociedade; e também Irís, uma mulher negra que trabalha como empregada doméstica em um dos casarões que ocupam o lugar.
Um passado ocultado
A pesquisa para o romance surgiu justamente dessa falta, que a autora percebeu mais tarde. “Me lembro de ficar muito impressionada com essa questão da eugenia, porque vejo isso como um tema tão importante e terrível da nossa história, mas que curiosamente ficou meio escondido. Não me lembro de nas aulas da história ter passado os olhos nisso, não sei se é abordado hoje em dia. A pesquisa se deu muito a partir de uma descoberta tardia, mas que passou a ser urgente”, explica. A necessidade de compreender o período da história veio também junto de entender a razão pela qual ele foi encoberto ou velado. “Partiu desse meu desejo de tentar me atualizar em relação a uma falta nesse processo de educação, que esconde muitos capítulos da nossa história, e que simplesmente a gente vive sem saber, sem questionar, e muitas vezes são capítulos muito importantes e escandalosos, como é o caso. A gente precisa saber até pra se posicionar como cidadão”, diz.
Na visão da escritora, esses assuntos apresentam claro diálogo com o presente, ainda mais pela proximidade temporal. Durante o lançamento em Portugal, Nara conta que uma amiga, que é atriz, fez a leitura de alguns trechos, e enquanto ela lia, a autora foi percebendo a dureza das palavras. “Eu fiquei muito comovida, porque são palavras muito duras. Essa dureza e crueldade das falas desses personagens foram coisas que tenho certeza que fizeram parte da infância e da formação de muitos de nós. É muito importante a gente pensar nisso, para entender o quanto a gente caminhou até aqui, o quanto as coisas mudaram”, explica. Esses trechos deixam claro o pensamento racista, o ódio contra o diferente e o quanto os personagens achavam que pessoas como Ícaro e Iris atrapalham o projeto que tinham daquilo que consideravam como uma sociedade “melhor”. Sobre isso, Nara ainda faz notar: “Quando lemos essas frases e essas palavras, elas são um insulto completo, não conseguimos normalizar essa crueldade, mas naquele momento era naturalizado. Esse reconhecimento do que foi esse preconceito, essa crueldade e esses crimes é importante para a gente entender o que deixou de ser”, diz.
Sob as asas da religião
Nara é nascida em Guarani, a 71 km de Juiz de Fora, e mora há anos na Inglaterra. A criação da cidade de Santa Graça, nesse romance, parte também de suas próprias referências. “Esse nome está carregado de ironia, por conta do projeto dessa cidade. É uma cidade fictícia, mas que carrega elementos da minha origem. Ainda que eu tenha contextualizado essa história na década de 30, é uma história que podia ter se passado na década de 70, 80, 90”, explica. Ela destaca que, no momento em que cresceu, ainda era muito comum que se ouvissem certas expressões que alguns desses personagens de ‘Puro’ usam sem a menor cerimônia.
Assim como em outros dos seus romances, a hipocrisia da religião também aparece – e, mais especificamente nesse caso, o pacto de cumplicidade que ocorre com essa ideologia. O catolicismo fez parte da vida da autora, criada com forte influência dele. “Fiz primeira comunhão, catecismo, todo o pacote. Então cresci debaixo dessas asas, sei o nome dos santos todos. Minha avó fazia novenas, não faltava à missa. Naquele momento, quando era criança, aquilo era normal”, relembra. A partir da adolescência, no entanto, Nara começou a ter um olhar crítico em relação a essa criação. “Fui percebendo como ela é opressora, repressiva, autoritária e hipócrita. Por conta dessa minha vivência, ela acaba voltando nos textos, porque eu vivi isso tudo muito de perto”, diz.
Uma certa polifonia
Outra relação muito brasileira que aparece no livro é justamente entre os personagens centrais, Ícaro e Iris. Os dois são figuras que atrapalham os planos que há para essa cidade e se unem também pelo afeto que vai surgindo entre eles, apesar de todas as diferenças e do preconceito. Mas como a autora deixa claro, trata-se ali de uma relação impossível. “Há uma cumplicidade silenciosa entre os dois. É muito complicado (…) A Íris não pode nem tocar direito nele, nas coisas da casa, por conta do preconceito”, diz. Essa relação também repete uma história que é emblemática no Brasil, da empregada que é ‘parte da família’, e que no entanto, como a autora destaca, parecem não ter direito de ter a própria família – algo que não ficou apenas na década de 30.
Um dos pontos que chamam a atenção na obra de Vidal é a estrutura do livro, que mistura as vozes dos personagens sem ter um exatamente narrador. A narrativa é guiada de outra forma. “Quando comecei a rascunhar esse livro, ele tinha uma narrativa muito mais tradicional. Mas não estava dando muito certo pra mim. Eu relia e tinha algo que estava faltando. Comecei a pensar em uma certa polifonia para o livro, mas era difícil fazer isso sem o livro virar um caos. Quando estava pensando a estrutura, escrevi em um caderno aqueles bullet points, tipo ‘Ícaro pensa’, ‘Lázaro fala’, ‘Íris sente’. E aí entendi o que tinha que fazer”, explica. Essas palavras ‘pensa’, ‘sente e ‘fala’, como a autora explica, também ajudam a entender os personagens, as incoerências entre o pensamento e o que é dito, e mesmo o gestual de cada um. A partir da escolha por essa estrutura, como ela conta, tudo fluiu rápido: “Foi uma virada de chave pra eu conseguir contar essa história. essa estrutura dialoga com essas entrelinhas do texto”.
A riqueza do ‘impuro’
Apesar de ser uma história que se passa décadas atrás, Nara conta que vê cada vez mais um diálogo dessa época e dessas ideias com o presente. “É muito assustador. Há um crescente desses movimentos de extrema direita, populistas, que se assemelham muito ao fascismo. Como um livro desses pode ter elementos de contemporaneidade?”, questiona. Por isso, ela também considera que foi importante trazer o tema para a literatura e poder pensar a partir dele.
O próprio nome do romance, como explica, traz uma reflexão nesse sentido. “A palavra ‘puro’, pra mim, é estranha. Acho que é, na verdade, bastante pejorativa, não gosto da ideia de pureza. Por exemplo a ‘pureza’ de uma raça, como pregava o nazismo. Essa pureza é pra mim o contrário de uma riqueza, porque exclui várias coisas. Eu acredito no oposto. Acho que a riqueza está na mescla, no dito ‘impuro'”, reflete.