O fim da cozinha para quem? E para quĂȘ?
‘Isto quer dizer que essas pessoas, que jĂĄ possuem dificuldades de cozinhar em suas casas, jamais teriam a menor chance de se alimentar diariamente por meio de entregas de comida.’
A fala do CEO de uma plataforma de delivery, trazida Ă tona nos Ășltimos dias, levanta muitas questĂ”es. A primeira delas jĂĄ foi explorada pela apresentadora Rita Lobo, acerca do teor elitista e alarmista, alĂ©m de ignorar as mĂșltiplas proteçÔes proporcionadas pelo ato de se cozinhar alimentos favorĂĄveis em ambiente domĂ©stico. Adiciono que esta fala desconsidera completamente a situação alimentar de grande parte da população brasileira desvelada pelo Ășltimo InquĂ©rito Nacional sobre Insegurança Alimentar, que aponta mais de 120 milhĂ”es de pessoas em algum grau de insegurança alimentar e nutricional no paĂs. Isto quer dizer que essas pessoas, que jĂĄ possuem dificuldades de cozinhar em suas casas, jamais teriam a menor chance de se alimentar diariamente por meio de entregas de comida.
A segunda trata de uma prĂĄtica comum a grandes corporaçÔes ligadas ao sistema alimentar dominante, que tambĂ©m previram o “fim da cozinha” para promoverem a entrada de alimentos ultraprocessados pela porta da frente, com destaque para a economia de tempo e a ascensĂŁo da mulher no mercado de trabalho como moedas de troca. O resultado disso, mais de meio sĂ©culo depois, foi exatamente a radicalização da produção e consumo deste tipo de alimento, que jĂĄ causou e ainda causa muitos prejuĂzos sociais, culturais, sanitĂĄrios, ambientais e polĂticos.
A terceira questĂŁo trata do crescente poder econĂŽmico e polĂtico destas plataformas, que submetem seus trabalhadores, apesar de nĂŁo os reconhecer como tais, a condiçÔes anĂĄlogas Ă escravidĂŁo. Sujeitos ao frio, fome, sede, violĂȘncia e morte cotidianamente. Enquanto esta empresa cresce vertiginosamente, mantĂ©m os seus trabalhadores da ponta em situaçÔes humilhantes. Enquanto nega alimentação a eles, faz lobby para impedir qualquer avanço em termos trabalhistas. EntĂŁo quando o CEO diz que “ninguĂ©m mais vai cozinhar”, de quem exatamente ele estĂĄ falando? Dos trabalhadores que ela submete Ă fome? Das classes B ou C? Obviamente que nĂŁo. Ela faz vistas grossas a esse grande contingente de pessoas famĂ©licas, pois se Ă© capaz de ignorar a fome de seus prĂłprios trabalhadores, que dirĂĄ de outros grupos.
Estas trĂȘs questĂ”es, portanto, levantam um debate central: para alĂ©m do tom alarmista ou exagerado, esta fala Ă© uma demonstração do poder polĂtico e econĂŽmico nĂŁo somente desta empresa, mas de todas as empresas de plataforma ao redor do mundo que realizam diariamente uma acumulação primitiva e violenta de capital, travestida de modernidade e praticidade, disposta a ousar ditar os rumos das prĂĄticas alimentares das pessoas e, consequentemente, de sua situaçÔes alimentares, visto que pesquisas jĂĄ dizem que as plataformas forçam o consumo de refeiçÔes inadequadas Ă saĂșde e Ă cultura alimentar de seus clientes. Ela Ă© um termĂŽmetro de demonstração de poder e do grau de ameaça ao direito humano Ă alimentação adequada. Por isso, precisamos questionar: o fim da cozinha para quem? E para quĂȘ?