Relatório indica utilização irregular de leitos do SUS em hospitais públicos e conveniados
O acesso às já estranguladas vagas hospitalares, principalmente as de UTI, pode estar ainda mais limitado pela alimentação incorreta de informações no programa SUS Fácil. Criado pelo Governo estadual para garantir rapidez e confiabilidade das atividades do sistema de regulação assistencial, o SUS Fácil permite, em tese, visualizar os leitos disponíveis na rede, a fim de garantir agilidade no encaminhamento dos doentes e salvar vidas. Na prática, porém, a realidade é outra. Relatório assinado pela Comissão de Trabalho de Mediação Sanitária da Macrorregião Sudeste aponta distorção entre os dados lançados e os verificados in loco nos hospitais. O documento também sugere que há uma reserva de vagas do SUS feita pelas próprias instituições em benefício de pacientes particulares ou que possuem convênio. O levantamento, realizado no final de 2012 e início deste ano, coloca em dúvida a eficácia do SUS Fácil e revela a deficiência de fiscalização da ocupação do leito do SUS. Também demonstra a ausência de cláusulas que penalizem a unidade contratualizada pelo SUS pelo descumprimento das exigências. Diante da constatação, tanto a Secretaria Estadual de Saúde, quanto a Secretaria de Saúde do município prometeram apertar o cerco e estabelecer novas regras para os estabelecimentos de saúde que mantiverem contrato com a rede pública. A ideia é impedir, por exemplo, que as instituições beneficiadas por recursos governamentais continuem permitindo que seu corpo clínico se negue a realizar atendimentos para pacientes do SUS.
Dos 32 hospitais localizados nos 12 municípios polos da Macrorregião Sanitária Sudeste, 19 recebem incentivos financeiros de diferentes esferas administrativas, sendo 16 deles privados e filantrópicos e apenas três efetivamente públicos. Dos 2.030 leitos da rede hospitalar de Juiz de Fora, 1.491 são conveniados. Deste total, que não inclui os hospitais psiquiátricos,148 são de UTI. "Hoje a regulação dos leitos contratualizados ao SUS é o grande gargalo do sistema. Existe uma deficiência enorme de acesso aos leitos, o que resulta em perda de tempo e morosidade no processo de busca. Mais do que isso: os leitos não são resolutivos", denuncia o promotor da Saúde, Rodrigo Ferreira de Barros.
Recurso público
O secretário de Estado da Saúde, Antônio Jorge de Souza Marques, sustenta que a governabilidade sobre o recurso é limitada se o pacto entre o prestador do serviço de saúde e a informação não for honesto. "O que nós e o Ministério Público temos observado é que, muitas vezes, o SUS Fácil tem uma relação de disponibilidade, mas a disponibilidade real é outra, com muita ocupação de recursos públicos pelos convênios. Na urgência, não podemos fazer distinção, mas, se a frequência é elevada, nós temos que exigir das empresas de saúde que construam a sua UTI, porque elas vendem um plano comercial, mas estão usando recurso público. Neste momento, estamos aumentando a nossa fiscalização e governabilidade sobre esses pactos e sobre a informação. Nós temos sido muito duros em relação a isso. No meu ofício ao prestador, falo da necessidade de ter lisura nessa informação. Além disso, eu listo todos os artigos do Código Penal em relação ao não cumprimento. É preciso que o prestador entenda que a informação precisa em relação ao SUS Fácil salva vidas."
Distorções principais em relação às UTIs
O próprio relatório da Comissão de Trabalho de Mediação Sanitária da Macrorregião Sudeste aponta distorções dos dados lançados no SUS Fácil, principalmente em relação às vagas de UTI. De sete hospitais visitados pelos representantes da comissão, em apenas um, o João Felício, havia correlação entre o registro correto do paciente no programa de software do Estado e sua real internação no momento da visita da comissão. Nos outros seis, os dados lançados não correspondiam ao efetivamente encontrado nas unidades. Na Santa Casa, por exemplo, dos 35 leitos de UTI, 13 não correspondiam ao registrado no SUS Fácil. No Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus, dos 30 leitos, 11 tinham informações incorretas ao que havia sido atestado.
Já no Hospital Doutor João Penido, das 39 vagas de UTI visualizadas no SUS Fácil em 19 de dezembro de 2012 e 10 de julho de 2013, menos da metade apresentava informações condizentes com as registradas no sistema. Havia divergência entre os registros constantes no sistema de regulação de vagas hospitalares e na relação de pacientes efetivamente internados na unidade. No Oncológico, nenhum dos registros sobre os seis leitos de UTI estavam corretos. No dia da inspeção, os seis leitos estavam vagos, embora para o SUS Fácil aparecessem como ocupados. Narciso Pazinato, um dos sócios do Oncológico, demonstrou estranhamento pelo fato de não ter recebido o relatório em que a unidade está sendo citada. "No dia em que o promotor esteve aqui realmente não tinha doente ocupando o leito de UTI, mas havia programação cirúrgica, o que me obriga a ter um atrelamento de vagas na UTI, porque os pacientes que realmente têm possibilidade de se curar numa intervenção de grande porte, como as cirurgias oncológicas, têm necessidade de serem acompanhados na UTI. É preciso observar a nossa especificidade, cuja rotina é muito específica. Somos oncológico e nunca deixamos de atender. Pelo contrário, atendemos muito bem. Além disso, por diversas vezes, já tive que abrir leito extra na UTI. Agora, se houve falha no lançamento dos dados, isso não é rotina", afirma Narciso.
Diretores apontam falhas de informação
O diretor do Hospital Maternidade, Ricardo Campello, diz que foi encontrada na unidade apenas falha de informação entre sistemas operacionais. "A discordância foi de informação. Ficou bem evidenciado para o Ministério Público que, no Terezinha de Jesus, não há ociosidade de vagas. Estamos sempre prontos a atender, pois somos um dos poucos hospitais do país 100% SUS. Temos orgulho de manter o hospital à disposição da população, pois essa é a filosofia da nossa instituição. Nossos 30 leitos de UTI estavam lotados. Temos uma taxa de ocupação hospitalar superior a 76%, o que pode ser considerada uma ocupação plena."
Segundo o diretor do Hospital Doutor João Penido, Márcio Itaboray, as discrepâncias encontradas nas informações lançadas pelo hospital no SUS Fácil podem ser explicadas pelas dificuldades de alimentação do sistema. "Um dos fatores que pesam é a agilidade com que essa informação tem que ser gerada. O lançamento no sistema é feito pelo próprio servidor da saúde, e muitos têm dificuldade de lidar com este tipo de tecnologia. Outra questão é que a informação tem que ser lançada no momento da alta, mas há muitos casos de pacientes que estão de alta médica e a família não vem buscar. Além disso, o preenchimento dos dados leva tempo e os profissionais estão em troca de turnos. Não há razão para não informarmos sobre nossas vagas, porque somos 100% SUS. O nosso problema é com a agilidade da informação, só isso, com a dificuldade de operacionalização."
De acordo com a assessoria da Santa Casa, o problema é que o SUS Fácil não é interfaceado com os softwares dos hospitais, como é o Datasus, do Ministério da Saúde. "Em reunião com o secretário de Saúde e todos os prestadores, a Santa Casa solicitou a busca de uma solução para este entrave." O secretário de Saúde do município, José Laerte Barbosa, informou que a questão foi discutida e que a proposta dos hospitais de fazer a interface do sistema do hospital com o do Governo do estado será considerada.
Para o promotor, o SUS Fácil tornou-se um instrumento fictício. "Da forma como está sendo gerido, não funciona. No entanto, não há previsão contratual de penalidade em função do lançamento incorreto dos dados. Por outro lado, restou evidenciado o interesse claro de algumas unidades em gerir os próprios leitos."
1.400 negativas de internação
Outro problema apontado pelo relatório foi a existência de leitos hospitalares que não aparecem para o SUS Fácil, como foi identificado na primeira visita da Comissão de Mediação Sanitária no Hospital São Vicente de Paulo (antigo HTO), em janeiro deste ano. Na segunda visita, a distorção já havia sido corrigida, mas a equipe ainda identificou que, dos nove leitos de UTI destinados ao SUS, quatro apresentavam informações incorretas no SUS Fácil. De acordo com o administrador da unidade, Marcone Andrade Soares, o que pode ter acontecido é que as informações verificadas in loco estavam diferentes do registro na tela do SUS Fácil, porque as alterações ainda não tinham sido lançadas. "O que pode ter ocorrido é um problema operacional, porque, com certeza, todos os leitos estavam ocupados por pacientes do SUS."
Já no Hospital Universitário (HU) foi constatada a disponibilidade de leitos na enfermaria pediátrica, embora eles não aparecessem na tela do SUS Fácil. De acordo com o diretor Dimas Augusto Carvalho de Araújo, o HU é a maior rede de atendimento ambulatorial na atenção secundária de Juiz de Fora e produz além do que determina a contratualização com o SUS, cujos parâmetros contratuais são referentes a 2005. "Em 2006, foi inaugurada a unidade Dom Bosco, o CAS, que incorporou uma série de tecnologias que a cidade nem tinha no sistema público. Em 2012, nós produzimos R$ 15 milhões, tivemos as contas aprovadas pela Prefeitura em R$ 14 milhões e recebemos somente R$ 7 milhões. Tivemos um déficit a favor do SUS de R$ 7,2 milhões." Dimas reconhece a importância do SUS Fácil para a regulação do sistema. No entanto, explica que a realidade, muitas vezes, atropela a burocracia. "A gente fica nessa situação: ou cumpre a burocracia, que é mandar o paciente para o HPS – e aí pode estar selando entre a vida e a morte dele -, ou o coloca numa ambulância, traz para cá, interna e depois cumpre a burocracia. Primeiro oferecemos os cuidados e depois lançamos no SUS Fácil. A gente acaba atropelando um pouco a realidade. Isso é que leva a essa falta de compatibilidade entre o lançado no sistema e o que se tem aqui."
No Hospital João Felício, os registros eletrônicos correspondiam à verificação in loco. No entanto, a comissão identificou 1.425 negativas para solicitações de internação de pacientes do SUS. O relatório aponta para o uso de leitos públicos por pacientes privados. "Considerando que o Hospital João Felício dispõe de oito leitos cirúrgicos para a especialidade ortopedia/traumatologia, percebe-se que tais leitos, devido ao pequeno número de cirurgias realizadas por mês, permanecem ou desocupados, ou ocupados por outras especialidades, ou mesmo ocupados por pacientes privados (planos de saúde e particulares)", revela o relatório da comissão na página 36.
Hospital contesta
A administradora do João Felício, Marli Guedes, afirma desconhecer o número de negativas de atendimento apontado. Dos 58 leitos disponíveis na unidade, 27 são para a rede SUS. "Se há negativas, elas ocorrem por falta de médicos na ortopedia. Estamos só com dois profissionais nesta área e encontramos dificuldade para conseguir novos. O valor pago pela tabela do SUS não é atrativo, e os médicos preferem ir para hospitais onde há um repasse diferenciado da tabela por parte da Secretaria de Saúde." Marli afirma que, ao contrário do que sugere o relatório, não há pacientes de convênio ocupando leitos do SUS. "É exatamente o oposto. Ocupamos nossos leitos de convênio com a rede pública. No CTI, por exemplo, temos apenas cinco leitos credenciados, mas há dias em que temos oito pacientes do SUS no local. Já estamos pleiteando número maior." Ainda segundo Marli, o hospital teria R$ 50 mil acumulados em diárias glosadas pela Secretaria de Saúde desde o ano passado. "Aqui 80% dos pacientes são do SUS."
Crítica à falta de contrapartida
O relatório do Ministério Público é enfático em relação ao financiamento da saúde com recursos públicos: "Diversos profissionais médicos do respectivo corpo clínico não se encontram vinculados ao SUS, utilizando-se de diversas dependências físicas e equipamentos custeados através de recursos públicos, sem qualquer contrapartida à entidade e ao SUS", indicou na página 41, referindo-se a Santa Casa.
Para o diretor do Sindicato dos Médicos, Gilson Salomão, se um hospital se propõe a prestar qualquer tipo de serviço é sinal de que existe aquiescência por parte do corpo clínico. "Não é do nosso conhecimento que exista esse tipo de diferenciação por parte do médico em relação ao paciente SUS e de convênio. Essa afirmação tem que ser comprovada por meio do setor de auditoria da Secretaria de Saúde. Se as contratualizações não estão funcionando, estou de acordo com a necessidade de o Poder Público tomar providências."
O secretário de Saúde, José Laerte, admite que, a partir de agora, a cobrança será maior em relação ao cumprimento de metas relativas ao SUS. "Vamos avaliar a adoção de metas do ProHosp para garantir um número maior de atendimento do SUS. Por exemplo, a Santa Casa recebe recursos do ProHosp e só doa 60% do seu atendimento para o SUS. É um absurdo, porque essa verba possibilita equipar o hospital para que ele possa atender os 40% destinados ao convênio ou particular. Nessa nova contratualização, vamos exigir um percentual maior para o SUS. É inadmissível equipar a Santa Casa, colocar uma hemodinâmica de mais de R$ 3 milhões, e a unidade não fazer para a gente as amputações, as cirurgias arteriais que precisamos para salvar vidas e evitar que as pessoas amputem membros. Vamos tentar corrigir isso nos novos contratos." O secretário também afirmou que o João Felício poderá ser descredenciado da alta complexidade na ortopedia se a negativa de vagas para o SUS continuar.
Em nota, a assessoria de imprensa da Santa Casa diz que o atendimento ao SUS supera os 60%. "A lei da filantropia não nos obriga a disponibilizar 60% dos leitos, mas a um conjunto de oferta de serviços prestados que está cumprida pela instituição. Em 2012, atingimos o resultado de 73,58%, de acordo com a lei 12.101/2009. O hospital é contratualizado na média complexidade e recebe incentivos, como o ProHosp, onde há metas definidas que são acompanhadas pela comissões e auditorias. O número de leitos disponibilizados está cadastrado no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde). Como exemplo, na cirurgia vascular, disponibilizamos dez leitos e tínhamos, na última semana (referindo-se à última semana de setembro), 14 internados. Portanto, quatro ocupavam leitos de outras especialidades também contratualizadas." Em relação a hemodinâmica, a unidade explica que o investimento foi de R$ 4.867.533,55, sendo R$ 1.524.586,02 pagos pelo Estado. Sobre a carência de médicos, a filantrópica informou que o problema não é da Santa Casa, mas realidade nacional.
Enfrentamento
Para o promotor Rodrigo Barros, o acesso à saúde hoje é altamente comprometido. "Se não tivermos uma mudança drástica no funcionamento do sistema e no enfrentamento dessas questões pelos gestores públicos, não se consegue superar essas deficiências. O que esperamos é que o Estado acate as recomendações que fizemos. Acredito que as sugestões serão atendidas, o que evitará a busca da via judicial. No nosso entendimento, há uma sintonia favorável à superação desses problemas."
Uma das sugestões apresentadas pelo Ministério Público ao Estado é que os hospitais beneficiados por verbas públicas tenham uma carência mínima de permanência no SUS. Outra ideia é a exigência de que os novos contratos assinados com as unidades conveniadas ao SUS que estejam recebendo verbas para estruturação física ou manutenção sejam também assinados pela direção clínica. "Com isso, o médico que trabalhar nesses hospitais, mas não quiser atender ao SUS poderá responder por infração ética", explica Rodrigo.