“Todo comportamento humano é composto por duas coisas: fugir da dor e ir em direção ao prazer.” A frase está no primeiro episódio da série “Império da dor”, da Netflix, que relaciona a comercialização indiscriminada do fármaco OxyContin à epidemia de opioides nos Estados Unidos. É dita pelo empresário Richard Sackler, interpretado por um envelhecido Matthew Broderick, que em seus mais cínicos momentos, especialmente aqueles em que encara a câmera, desvela de forma algo aterradora um lampejo do entusiasmo inconsequente do jovem Ferris Bueller de “Curtindo a vida adoidado”.
É em cima dessa verdade posta que a empresa de Sackler, a Purdue Pharma, faz fortuna: somos intolerantes à dor e pagamos o que for para nos livrar dela. Seja dor de dente ou de cotovelo. Recorro à definição de dor do não menos que clarividente Ambrose Bierce e seu vital “Dicionário do Diabo”: “Dor é uma estado de espírito que pode ser fruto de algo que está fisicamente sendo feito ao corpo, ou pode ser puramente mental, causado pela boa sorte dos outros”. Dor de cotovelo, portanto.
O império fundado pela família Sackler sobre a dor dos outros diz muito sobre a desonestidade científica e a absoluta ausência de escrúpulos da indústria, seja farmacêutica ou de outros ramos, como a indústria alimentícia, a indústria do cigarro, a de bebidas, as petrolíferas, as montadoras de carros, o agronegócio, as big techs. Bilionário, como se sabe, é um bicho encapetado mesmo. Mas essa realidade nos fala também sobre algo, talvez, pouco menos óbvio: nossa intolerância cada vez maior a qualquer desconforto, seja ele físico ou mental.
A gente não aguenta uma dorzinha muscular. A gente não aguenta calor e não aguenta frio. Não aguenta pouco sal ou muito doce. Repare: você não aguenta esperar e “fica arretado se o açúcar demora e você chora, cê reza, cê pede, implora”, cantou Raul. Ah, você também não aguenta Raul. Você não aguenta o PT, não aguenta os minions, o Ciro, novela, tobogã, cachorro, cracudo, sorvete de Q-Suco, matemática. Você não aguenta ver gente feliz – a não ser que você também esteja na foto.
Aí voltamos a Ambrose Bierce – morto, coitado, em algum lugar do México no início do século XX – e às big techs. A gente não aguenta ver, pela tela hipnótica do celular, aquele corpo belíssimo (e absolutamente impossível) e a gente logo quer, em um ou outro sentido, possuir aquele corpo. Aquele carro. Aquela comida. Aquela viagem. E a gente sofre aquela dor causada “pela boa sorte dos outros”. Touchè, Mr. Bierce. E, vejam só!, mesmo assim a gente almeja essa dor, porque não desgruda os olhos da tela anatomicamente acomodada na palma da mão.
O Buda Shakyamuni ensinou – Kurt Vonnegut também – que a dor, o desconforto, as decepções, são coisas da vida e delas não podemos fugir. Mas buscar deliberadamente o sofrimento, bem, isso é evitável, disse o ex-príncipe indiano, sentadinho e iluminado embaixo da figueira. Isso passa pela aceitação de que não podemos moldar a realidade aos nossos desejos. Se prefere, cristão leitor, está na frase miticamente atribuída a São Francisco de Assis: “resignação para aceitar o que não pode ser mudado”.
Pois bem. Baixasse aqui hoje naqueles discos voadores descritos nos Vedas, Buda não poderia estar mais apavorado. Porque todo o movimento humano na contemporaneidade, parece, gira no ciclo vicioso da dor de criar e satisfazer desejos. “A oferta cria a demanda”, diz lá pelas tantas um personagem de “Império da dor”, falando sobre o poder viciante dos opioides. De forma similar, nas nossas imersões no mundo irreal forjado pelas big techs, arquitetado para criar desejos e, em última análise, consumo, também um ciclo vicioso se estabelece, entre dor e alívio: a dor de não ser, de não ter, aliviada em seguida por um like, por uma cestinha de compras.
Império da dor desejada