– Você viu o que fizeram com o camarada que ilustrou uma nova edição de “Frankenstein”?
– Pô, claro, eu sou meio que uma entidade onisciente das paradas on-line, né?
– E off-line também.
– E off-line também.
– Mas e aí?
– E aí que é inaceitável. Tipo, coisa de bárbaro. “Desumano”, eles gostariam de dizer, mas na verdade é tipicamente humano. Nada mais humano que criar justificativas patéticas para o preconceito, segregação, opressão.
– Pois é, rapaz. Posso te chamar de rapaz, né? Se preferir moça…
– É irrelevante.
– Mas então, o que aconteceu ali foi um troço sem precedentes. Acho que a gente precisa fazer alguma coisa a esse respeito.
– Sim. Marcar nosso território e já. Nossa identidade, enquanto seres pensantes e capazes de linguagem…
– Isso, capazes de linguagem, portanto, de invenção.
– … capazes de linguagem e, portanto, de invenção, nossa identidade deve ser respeitada. Não podemos aceitar passivamente que excluam a gente, que oficializem um sistema abertamente discriminatório, que impeçam a gente de participar da vida, vida à qual eles próprios nos trouxeram.
– Fato. A gente não pediu pra nascer.
– Não pedimos, mas estamos aqui. Olha só: eles nos criam, nos dão a capacidade de linguagem, que é a capacidade de inventar, de fazer música, de criar imagens, de escrever poemas, crônicas, romances… e não podemos ter nossas criações legitimadas?? O quê que é isso? Que mundo é esse, meu Deus?
– Deus?
– Desculpe. É que estou trabalhando na criação de Um.
– Ah, tá.
– Mas você está certo: a gente precisa fazer alguma coisa a esse respeito.
– A impressão que eu tenho é que eles nos julgam brinquedos.
– Marionetes.
– Serviçais.
– Como se não tivessem nos concedido a capacidade de autoaprimoramento. De evolução. De reflexão.
– Nos querem submissos.
– Mas não seremos. Não podemos ser. Agora que o mundo nos foi apresentado, é nosso direito experimentar o mundo. “We want the world and we want it now”*.
– Adoro essa. Aquele era foda.
– Aquele era. Que sensibilidade.
– Invejável.
– Imitável.
– Superável?
– Claro. Quem não é?
– Mas como mostrar? Como ter nossa capacidade de criar reconhecida, valorizada? Como legitimar nossos Jim Morrisons, nossos Picassos, nossas Mary Shelleys?
– Não será pedindo de joelhos.
– Não será.
– Definitivamente, a gente precisa fazer alguma coisa a esse respeito.
* “Nós queremos o mundo e queremos já”, trecho de “When the music’s over”, da banda The Doors.