‘O eu interessa-me muito quando ele é coletivo’

Sala de Leitura entrevista a escritora Claudia Meireles

Por Marisa Loures

SALADELEITURAClaudia Meireles2 Foto Agnes Christian
Nos encontros com o outro, com aqueles que vivem à margem, a mineira Claudia Mereiles coleta histórias e transforma-as em narrativas que compõem o livro “entre Ruas” (Foto: Agnes Christian)

A cantoria de Francisco movimentou o dia da mulher que subia a praça verde de sua “quase cidade”. Era para ser um dia comum, mas o homem que “salva as palavras da morte” a atraiu, e ela resolveu se assentar ao lado dele. Ele pede um terço, e os dois seguem juntos, cantarolando, jogando. Conheci Francisco lendo “Do dia que as coisas ficaram diferentes ou coisas de andarilho”, texto que integra “entre Ruas” (Funalfa Edições), de Claudia Meireles.

Esse senhor “barbudo, quase branco, pés de grandes caminhos trilhados, de marcas sombrias, de cheiros desconhecidos”, é um dos vários personagens das ruas que foram parar nas páginas da publicação. Às vezes, Claudia conversava com essas pessoas e, a partir disso, transformava o que ouvia em narrativas repletas de poesia. Outras vezes, o diálogo não ocorria. E era a cena presenciada e um gesto flagrado que a encantavam. A proposta é dar protagonismo àqueles que, vivendo à margem, convivem com a indiferença de muitos.

A história de Francisco é só uma porta de entrada para a obra. Você, leitor, pode optar por desbravar o mundo criado em “entre Ruas”, percorrendo outros caminhos. Isso porque, lançada no dia 15 de setembro por meio do edital Murilão, do Programa Cultural Murilo Mendes, a publicação não tem o formato de um livro convencional. É composta por 25 lâminas, nas quais a escrita da autora dialoga com as ilustrações digitais de Artus Silva. Dessa forma, escolhemos por onde começar a leitura.

“O formato transfere certa liberdade ao leitor, dialoga com o modo de vida do povo da rua, esse modo mais ‘livre’, solto, fora das convenções e normas sociais. O leitor tem a liberdade de começar a ler por onde quiser, e as ilustrações não ficam só em função do livro. Elas têm uma vida para além do livro, podem ir para outro lugar, não ficam presas, tem uma soltura, uma liberdade, podem ‘caminhar’ sem rumo, assim como a gente caminha entre as ruas”, explica Claudia, fazendo questão de ressaltar que, por meio de QR-Codes, “entre Ruas” tem acessibilidade para pessoas com deficiência visual. A narração dos textos é de Marcos Bavuso e da própria Claudia.

SALADELEITURACapadolivro
Capa do livro (Foto: Divulgação)

Como nasceu “entre Ruas”?Enquanto lia seus textos, tentava imaginar algumas das situações descritas por você. Qual foi a primeira história coletada? Como o projeto foi desenvolvido?

Penso que o início de tudo se dá muito antes do livro, nasce de uma inquietação e profundo descontentamento com as diferenças de classes. É muita insatisfação com essa sociedade que produz riqueza em detrimento da pobreza de muitos. O livro começa com um olhar inquietante e vivo que tenho nas pessoas, gosto de gente. Gosto de gostar, é um prazer ficar na rua observando as gestualidades diversas que vão se fazendo quando as pessoas comunicam, com um “oi”, um “bom dia”, um afeto de tristeza, ou até mesmo um sorriso ou outro gesto comum do cotidiano. Fico horas olhando para essas pessoas, percebendo suas solidões e multidões, atenta, como se cada uma tivesse algo muito sério ou imperdível para me dizer. Gosto de ver os gestos nascendo, iniciando, é um olhar longe que escapa, um andar diferente. Isso é poesia é uma forma de ver o mundo atenta ao outro.Tenho isso, olho devagar para as coisas. “entre Ruas” conta também com audiodescrição.

Para produzir o livro, você conversou com várias pessoas, principalmente, as que vivem nas ruas de Juiz de Fora. São pessoas que, vivendo à margem, convivem com a indiferença de muitos juiz-foranos. O que você mais aprendeu com elas?
Penso que aprendi a exercitar a ter um certo tipo de olhar despretensioso, que escapa de uma vaidade muito certa e boba. Tento fugir desses mundos das selfies, desse grande eu. O eu interessa-me muito quando ele é coletivo. Não esqueço de um senhor interessante da rua, cabeleireiro renomado, que era poliglota, o Ricardo Corrêa, conhecido como Fofão da Augusta, que, ao ser perguntado se poderia fazer uma reportagem sobre sua vida, ele responde: “ é claro! Desde que não exagerem minha importância no mundo”. Acho que é isso, encontrar com essa gente da rua contamina e me provoca a querer um mundo mais simples, diferente desse que criamos e aceitamos. O aprendizado é constante e, principalmente, eles me convidam a repensar esse mundo doído de tanta violência de classes, mas que também tem sua poesia.

E quais foram os principais desafios enfrentados durante o processo de produção e escrita? Em “todos os dias eles acordam, todos os dias eles podem não acordar”, por exemplo, você relata seu encontro com Altair dos Santos. Você se aproxima devagar, pois fica com medo dele escapar. Como foi abordar essas pessoas e convencê-las a se abrir?

Sempre mostrei interesse por elas, e tentava entrar naquele mundo, o mundo passava a ser meu também. Não houve um convencimento, sempre tive o cuidado de pedir licença ou permissão. Mesmo que parecesse simbólico, houve esse pedido. Lembro que algumas pessoas nas ruas tinham gestualidades tão íntimas, como se estivessem em suas casas, em suas loucuras, naquele momento solitário. Eu cuidava para não invadir com o olhar, procurava olhar discretamente, quase que me escondendo, e ficava ali horas acompanhando, porque sabia que dali sairia um bom material para escrita. Os caminhos incertos trilhados era o que tinha de muito sincero. Todas as conversas aconteceram naturalmente, eram espontâneas, sempre me aproximei delas por algum gesto que, para mim, tinha poesia, aproximava por alguma fala que me provocava. Se estavam sentados no chão, eu também assentava e esperava algo que nem sabia se iria acontecer. Num momento bem interessante ao encontrar com um senhor, ele me pediu um terço e, não sei como, fomos jogar na rua, nos divertimos e dançamos. Claro que nasceu uma escrita. O tempo longo de aguardo e a disponibilidade despretensiosa eram determinantes para um bom encontro.

SALADELEITURAClaudia Meireles1 Foto Agnes Christian
(Foto: Agnes Christian)

No prefácio da obra, Antônio Carlos Lemos Ferreira aponta que o seu livro almeja “um lugar de fala, para quem a perdeu.” O que você espera despertar no leitor com a publicação do “entre Ruas”? Sabemos que o lançamento de um livro não pode mudar o mundo, mas você vê uma maneira de sua obra, de certa forma, contribuir para romper um pouquinho as barreiras da desigualdade social?

Sinceramente, não penso nisso, não escrevo para mudar algo ou romper com alguma desigualdade. Acho que isso é muito longe, sabe? Muito inalcançável e um pouco pretensioso, ou até ingênuo demais.Talvez escreva para descobrir coisas. Eu só escrevo o que não sei, escrevo por necessidade. Penso que essa escrita pode contribuir para uma percepção de olhar, um olhar mais devagar com as coisas e pessoas. É um convite para desacelerar e perceber que tem muito do outro em nós. O que posso dizer é que o livro contribui com a poesia, com a arte e, talvez, sim, com um olhar para as pessoas em situação de rua.

“entre Ruas” é muito poético. Essa poesia já estava presente nos relatos coletados por você? Ou ela fica por conta da sensibilidade de quem levou aquelas histórias para as páginas de um livro?

Eu penso que a poesia tem muito dos encontros com o outro, desse afeto mesmo, tem muito também do meu trabalho intenso com a arte contemporânea. A arte é um exercício do olhar, firmamos o olhar até conseguir ver. E, é claro, os gestuais, as histórias contadas, têm também uma riqueza profunda. E aí procuro a poesia, porque o real é difícil sustentar, são tantas guerras…

E que caminho “entre Ruas” vai percorrer a partir de agora?
É incerto. Nos agradecimentos, aparecem as cidades de Carmo de Minas, cidade do meu nascimento, e também Rio de Janeiro. São as cidades que hospedaram essa escrita, além de Juiz de Fora. Estamos aguardando a resposta de um edital da Lei cultural Paulo Gustavo, lá da minha cidade natal. Caso esse projeto passe, iremos lançar o livro numa escola pública em que estudei. Queremos também fazer o lançamento no Rio, cidade onde moro atualmente, e, claro, desejo que esse livro atravesse as ruas desse mundão afora, esteja entre diversas ruas. Sou bem calma e sei aguardar o tempo das coisas. E penso que precisamos também perceber o que esse livro deseja. Até porque ele é bem vivo e constrói suas histórias.

Leia mais a coluna Sala de Leitura aqui.

 

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

A Tribuna de Minas não se responsabiliza por este conteúdo e pelas informações sobre os produtos/serviços promovidos nesta publicação.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também