Assombração

Por Wendell Guiducci

Assombração? Ih, aqui já teve muita. Sobe lá na casa do Doutor Antônio e olha a porta do quartinho de ração, onde antes morava o Sidério Simão. Você vai ver que tá cheinha de marca de ferradura. É de mula-sem-cabeça. Ainda dá pra ver o chamuscado no batente, porque em vez de dar coice, ela batia é com as patas da frente, o fogaréu lambendo a parede. Sidério, que Deus o tenha, dizia que nunca passou tanto medo na vida como na noite que ela atacou. E olha que não era homem frouxo.
E o caixão que vinha flutuando embaixo do bambuzal? Nhá Zizinha que viu e foi mais de uma vez, no Dia de Finados. Dizia que era o velório que não fizeram pra Dona Angélica, uma peste de mulher, que morreu de doença ruim e enterraram sem os devidos sacramentos. Meninada cortava caminho pelo mato só pra não passar na estrada do bambuzal, medo de topar com caixão, mesmo fora de finados.
Saci também tinha, aprontava ruindade que era uma desgraça. Roubava cavalo, matava galinha. Sumia com ferramenta. Teteco do Sô Tininho chegou a apanhar o diabinho uma vez, trancou no paiol. Quando voltou com o pai pra mostrar, o trem tinha pegado fogo inteirinho. Até bem pouco ainda tinha viga queimada lá pra provar. Depois os netos venderam o sítio e o novo proprietário botou piscina no lugar.
Tinha muita assombração mesmo. O pé de pitanga, onde se enforcou a menina Ritinha, que chorava em noite de ventania. O homem branco que roubava chapéu de cavaleiro na Ponte do Tatão. Jacinto Pereira, que entrava no chiqueiro em noite de lua cheia, rolava na bosta de porco e saía de lá lobisomem. Ciço Sapateiro, que continuava batendo prego em botina mesmo 20 anos depois de ter morrido.
Tudo isso teve. Se perguntar pros antigos que ainda estão por aí, eles vão confirmar. E contar outras histórias. Mas ninguém quer prosa com antigo. E se você me perguntar por que não tem mais hoje em dia, por que elas desapareceram, te digo que as assombrações morreram tudo de fome. Porque assombração vive é das histórias que a gente conta. Cada história é uma oferenda, um alimento. Quando cessam as histórias, cessa a vida de tudo que é mágico. E o mundo vai ficando assim, como se diz… prático.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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