Hilda Amaro da Silva: A memória viva do Batuque
Hilda Amaro da Silva fez 92 anos no dia 7 de agosto. O presente pedido foi simples: visitar o Morro do Cristo e rever a cidade onde morou a vida inteira por outro ângulo. A história de Juiz de Fora, ela conheceu através do canto. Desde a infância, o samba a acompanhava nas festas de família, mas ela queria mais do que apenas ouvir. O corpo nunca parou quieto, bastava escutar um batuque que os pés, pernas e ombros começavam a se mexer. Por isso, foi fazer sapateado no colégio. Mas ainda era pouco. Queria mesmo era cantar, e começou bem nova nessa jornada. Aos 18 anos, emprestava sua voz ao rádio, nos famosos programas da PRB-3, e já aos 62 encontrou seu lugar no Batuque Afro-brasileiro de Nelson Silva. Foi lá, por meio das várias canções deixadas pelo fundador, que Hilda descobriu mais sobre a sua história. “Aprendi muita coisa ali dentro, e tudo que aprendi vou passando para frente.”
Hilda cresceu na Rua Bernardo Mascarenhas, na casa que dividiu com a mãe, a avó e os tios até os 9 anos. Depois se mudou para o São Bernardo até casar e se estabelecer de vez na Rua Rosa Sffeir, no Bairro Grajaú, onde criou seus quatro filhos e viu crescer cinco netos. Sua voz nas canções de Nelson Gonçalves são uma nítida lembrança na memória dos filhos. A mais velha, Rita de Luzie da Silva, conta que sempre acordava com a voz da mãe ao fundo, cantando enquanto lavava roupa. “Toda vida gostei de música. Até hoje meu radinho anda pra cima e pra baixo comigo, me acompanhando nas tarefas de casa”, diz Hilda. A paixão pela música, dança e, principalmente, pelo carnaval foi passada para a família. Hoje, a maioria dos filhos está envolvida em algum projeto cultural e ajuda a mãe a continuar na arte.
Quando pergunto o que o batuque representa, sem nem pensar, ela responde: “Vida. Alegria. É muita emoção ali dentro. Me sinto bem.” Há 30 anos Hilda é uma das integrantes do projeto. Ela não toca, mas fica por conta do coro feminino ao lado de outras 12 mulheres. “Eu canto, e dançava muito, mas agora não aguento muito não, só mexo o corpo pouquinha coisa.” Conheceu o batuque muito antes de fazer parte dessa “família”, como ela diz. Seu marido, Zico José da Silva, era amigo de Nelson Silva e frequentava os encontros, enquanto ela tinha amizade com as irmãs do compositor. Mas só após a morte de seu esposo entrou para o grupo.
Por oito anos, Hilda cuidou de Zico, que ficou doente, acamado. “Depois que ele morreu, eu falei: ‘vou entrar para alguma coisa para não ficar pensando muito, né’, e aí entrei para o Batuque e foi bom demais para mim.” Ela queria ter mais tempo de batuque, mas não se arrepende da forma como tudo aconteceu. Apesar de ter passado por situações difíceis, aproveitou muito cada oportunidade, sempre com um sorriso no rosto, afinal, como ela brinca, a alegria é sua marca registrada. Todas as roupas das apresentações são preparadas por ela. O guarda-roupas está cheio de cores e estampas. Vaidosa como é, Hilda faz questão de escolher com cuidado os acessórios. É comum encontrá-la com muitos colares, pulseiras, brincos coloridos e grandes, tiaras ou turbantes. Foi assim que nos recebeu na sua casa.
“São Benedito é fio da Bahia. Maria Conga também baiana é. Pai Cipriano é nego da Bahia, vovô da Angola nasceu em Nazaré!”. Dona Hilda começou a cantar “Bahia do Candomblé”, de autoria de Nelson Silva, durante a entrevista. Ela diz que é uma de suas favoritas dentre as mais de 80 composições guardadas na pasta preta que segurava, a mesma que todos os membros do grupo têm. Em seguida, canta mais uma: “Bendito seja o pranto meu. Louvado seja o que Deus me deu. Vou levando a cruz, buscando a luz da redenção.” Dessa vez, enquanto dá voz ao samba “Redenção”, uma das preferidas do maestro Sebastião Mota, o integrante mais antigo do batuque, que morreu no mês passado, ela se emociona. “Nossa mãe, lembrei do seu Sebastião aqui… fiquei emocionada. É cantar isso aqui que lembro dele. Ele abria os braços nas apresentações e dava aquele pulinho dele. Mexeu comigo agora. O Batuque continua, continua como sempre!”
O que Hilda espera para o futuro do grupo é que o legado de Nelson, Sebastião e de tantas outras pessoas que passaram por lá e fizeram o projeto ser o que é hoje, permaneça. A iniciativa é uma das mais tradicionais na cidade. Desde 1964, o Batuque é resistência, ritmo, dança e música, que resgata a história e valoriza a cultura negra em Juiz de Fora. Considerado patrimônio imaterial pela Prefeitura do município, para Hilda ele é herança. “Agora coloquei minha filha ali dentro, porque tinha que ter uma sementinha minha lá. E eu sinto que ela está feliz, assim como eu e o pai dela, que também gostava.” Mas Hilda faz um alerta: “precisamos de mais gente interessada para melhorar”. Como representante mais antiga do batuque, ela teme que a falta de mais pessoas coloque em risco a existência do grupo. No entanto, ela continua a ecoar o canto que aprendeu, na espera que atraia mais batuqueiros. Se dependesse só dela, os ensaios de terça-feira se multiplicariam, porque para ela não tem alegria melhor do que o batuque.