Dionysia Moreira: Há 90 anos, a voz que canta Juiz de Fora
Para ir atrás da música, Dionysia Moreira enchia a cama de travesseiros, pulava a janela de casa e atravessava a noite pela Rua Halfeld, no Centro de Juiz de Fora. A cidade dos anos 1950 era embalada pelos grandes nomes do rádio, com suas vozes potentes que não cabiam dentro de si. Dionysia era assim. Do alto dos seus 20 anos decidiu que a voz, ao mesmo tempo forte e suave, já não podia ficar limitada às paredes de casa. Contra a vontade do pai, se entregou à música. “O meu defeito era cantar, nunca fui de namorar, fazer coisa errada, eu só queria cantar.”
Aos 92 anos e com uma coleção de prêmios, fica evidente que o canto de Dionysia não é nenhum defeito, mas sim um chamado para a vida toda. Em casa, no Bairro São Bernardo, ela nos recebe com sua melhor roupa, a mesma que usou ao se apresentar no reality show “The Voice+”, em 2022, na TV Globo. Os cabelos impecáveis adornam o enorme sorriso que se espalha pela sala, estampado em fotos nos carnavais e por clubes da cidade.
Para quem recebeu e recebe tanto prestígio, Dionysia conserva uma humildade única, simpatia que sai fácil como seu canto. De uma família com 12 irmãos, o dom do canto recaiu só sobre ela. A dádiva mais parecia castigo quando era impedida de fazer o que amava por conta dos costumes da época. “Papai tinha aquele apego aos filhos. Me batia quando eu fugia para cantar. Mamãe entrava no meio e sobrava para ela também. Quando eu fiz uns 24 anos já estava cansada daquela vida, saí de casa, não aguentava mais.”
Com detalhes, ela lembra da primeira vez que tomou coragem para pular a janela do quarto. “No Parque Halfeld tinha a PRB-3 (que viria a se tornar a Rádio Solar), e toda quarta-feira eles tocavam música sertaneja. Papai gostava muito e nós sempre ouvíamos de casa. Um dia eu tomei coragem e fui lá. Começava às 21h o programa. Subi a Halfeld todinha a pé. Cheguei, bati na porta e o Seu Sebastião, que era o responsável na época, falou: ‘O que você está fazendo na rua nessa hora, menina?'”. Sertanejo ela ainda não cantava, mas pediu para apresentar uma de suas músicas favoritas, “Último desejo”, de Noel Rosa.
A primeira apresentação, à capela, deixou todos encantados e o gosto pelo rádio só aumentou. Depois de um tempo, Dionysia conseguiu vaga de cantora em um auditório na Rua São João. “Eles estavam precisando de uma cantora para substituir outra que saiu para casar. Na época, em Juiz de Fora existiam várias cantoras de rádio, eu não era ninguém, mas mesmo assim me inscrevi para a vaga. Ganhei o primeiro lugar.” Nesse momento da conversa, o marido, Clóvis, se afasta da função de recolher os prêmios da estante e conta do primeiro dia que viu Dionysia se apresentar. “Eu era operador de som na época e ela era muito metida. Eu ficava olhando e ela passava por mim com nariz em pé, como se nem me visse.”
Os encontros e desencontros de Dionysia com a música coincidem também com sua história com Clóvis, que anos depois viria se tornar seu parceiro de vida. Admirando a jovem brilhar nos palcos de Juiz de Fora, Clóvis já sabia que estavam destinados a ficar juntos. “Eu dizia: ‘um dia você ainda vai ser minha'”. Dez anos mais jovem que a atual esposa, ele precisou se mudar da cidade quando foi servir o Exército. Ficou 20 anos afastado, sem nem ouvir falar no nome de Dionysia. Enquanto isso, a vida da cantora passou por um “embalo”, como a própria descreve, que também a separou dos palcos por anos. “Fiquei cerca de 20 anos sem cantar. Estava sofrendo de paixão. Na época tinha pegado uma menina para criar e precisei me afastar dela.”
Já fora de casa, sem a família por perto, Dionysia se sentiu muito sozinha. Foi o motorista do auditório em que cantava que a ajudou. Viveram por 20 anos juntos. “Ele era muito cismado, até para ir à padaria eu tinha que ir de carro”, conta. Por conta disso, guardou para si a voz potente. Depois que o primeiro marido morreu, foi a irmã que a reanimou a voltar aos palcos. Dessa vez não para a rádio, mas um programa de auditório na então TV Industrial, que tinha sede no Morro do Cristo.
“Chegando lá, quem era o câmera?”, Dionysia abre o sorriso e dá uma olhadinha para o marido. “Depois de 20 anos a gente se encontrou de novo”, Clóvis afirma contente. Já em outra fase da vida, a paixão reacendeu. De volta à música, ela nunca mais se separou dos palcos. Nem de Clóvis. “E aí já se vão 40 anos juntos. Tivemos nossos problemas, nossas brigas. Ele é muito ciumento, até hoje. Mas nós estamos bem”, afirma Dionysia.
A intérprete nunca conseguiu viver da música. Para ela, ser cantora não é uma profissão, mas sim uma missão. Trabalhou como faxineira, professora de reforço, fez curso de acompanhante de idosos. “Não bebo, não fumo, nem guaraná eu tomo”, brinca. Cantou com nomes renomados nacionalmente, como Cauby Peixoto, Jerry Adriani, Angela Maria. Fez show próprio no Teatro Paschoal Carlos Magno, em 2022. “A casa ficou lotada e todo mundo já me conhecia.” Por 16 anos integrou um conjunto de músicos que se apresentavam por clubes em toda Minas Gerais e também no Rio de Janeiro.
Quando pergunto se já teve vontade de sair de Juiz de Fora, Dionysia responde, “oportunidades não faltaram, mas sempre tive medo”. Esse medo não ficou de lado quando, aos 90 anos, como a participante mais velha do The Voice+, ela subiu no palco e se apresentou para todo o país. “Deu um frio na barriga, sim, mas quando eu estou cantando esqueço de tudo. Estava fazendo o que fiz a vida toda e isso me deu segurança.” Foi finalista do programa e afirma que participar do reality, já com 90 anos, foi como um presente. “Recebi e recebo muito carinho até hoje. O The Voice+ me fez sentir uma artista de verdade, foi como voltar no tempo do rádio, subir no palco e ver todo mundo sentindo a minha música pela primeira vez.”