Profissionais enfrentam o racismo para assumir protagonismo no futebol
Wesley Assis, Negrette e Dênis Ricardo superam estruturas racistas para ocupar posições de liderança no cenário esportivo local
“O racismo é normal na La Liga”, escreveu Vinicius Júnior, atacante do Real Madrid, em seu Instagram no último domingo (21), após ser alvo de gritos e entonações racistas por parte considerável dos torcedores adversários presentes no Mestalla, estádio onde o Valencia manda seus jogos. A repercussão dos atos racistas tomou proporções enormes, sobretudo porque Vini é incisivo na luta antirracista. Na semana em que as manifestações do atacante brasileiro balançaram o esporte, a Tribuna conversou com diferentes personalidades negras do futebol local para discutir a questão do racismo no ambiente futebolístico.
A jornalista espanhola Virtudes Sanchez, colaboradora do Marca que atualmente mora no Brasil, acompanha os passos do craque brasileiro desde que a relação com o Real Madrid estava no campo das sondagens pelo desempenho do então adolescente. Ela analisa que a Espanha relativiza o racismo e não está acostumada com atitudes reativas, que questionam as ofensas. Por isso, diz a jornalista, muitas vezes o país culpa a vítima. “Vinicius é um exemplo da luta contra o racismo, pois ele enfrenta os racistas enquanto muitos outros abaixam a cabeça e se calam. Vinicius é um líder”, pontua.
Para Sanchez, a relativização do racismo na Espanha é um problema estrutural. E, em relação ao Brasil, o país está longe do ideal no combate ao racismo. “No Brasil há mais consciência de que o racismo seja algo que se deva tomar medidas para combatê-lo. Por isso aqui, nos estádios, há mensagens de que racismo é crime e existem organizações para combater o racismo em torno do futebol”, conta, a partir de sua experiência nos dois países.
Uma das organizações que atuam diretamente no combate ao racismo no futebol brasileiro é o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. A instituição publica anualmente um relatório sobre supostos casos de racismo no esporte, sem a distinção jurídica de injúria racial e racismo. Através de sistemas de monitoramento, eles acompanham casos que são noticiados nos veículos de comunicação. No último relatório, publicado em agosto do ano passado com números levantados de 2021, foram contabilizados 74 episódios do tipo. Desses, 64 foram notificados no Brasil e o restante no exterior. A grande maioria dos violentados são atletas; enquanto em pelo menos 44 casos os agressores são torcedores.
Os números mostram que o Brasil pode estar à frente da Espanha no combate ao racismo, sobretudo por ser um país onde a maioria da população é negra, porém, como denuncia o relatório, a realidade ainda é muito distante do ideal.
De acordo com levantamento realizado pela Revista Babel, da USP, em 20 anos de competição de pontos corridos, a divisão de elite do Campeonato Brasileiro nunca teve um dirigente negro. As exceções estão na Série B, em que, em 2018, Palmeiron Mendes Filho presidiu o Guarani e, em 2019, Sebastião Arcanjo chegou ao posto mais alto entre os dirigentes na Ponte Preta.
A situação é reflexo da falta de oportunidades para o negro brasileiro em posições de destaque na sociedade. Quem afirma é Dênis Ricardo, ex-atleta com passagens por Botafogo, Palmeiras e Grêmio que atualmente compõe a diretoria de futebol do Aymorés, clube ubaense que disputa o Módulo II do Campeonato Mineiro. “Eu vejo que nós negros, na concorrência que temos com outras pessoas de tom de cor diferente do nosso, devemos a cada dia demonstrar uma capacidade bem maior”, analisa. “É uma concorrência ao meu ver desigual, que acontece há muitos anos, e é um debate que está sendo colocado à tona agora”, comenta.
Como os estereótipos racializados limitam os acessos?
A produção de estereótipos relacionados às pessoas negras no Brasil funcionam, de forma esquemática, como evidência das dificuldades encontradas por essa população no que diz respeito à ocupação de determinadas posições sociais. Como exemplo, Ricardo lembra que “nós somos vistos ainda por sermos fortes, resistentes e por suportar cargas de trabalho árduo, seja pela resistência física no esporte, seja no trabalho doméstico ou braçal. Essa visão que é rotulada a nós desde a época da escravidão perdura até hoje”. Ele pontua, ainda, essa questão como uma “dificuldade que a sociedade tem de enxergar o negro, não só com todas essas valências físicas, mas de ver o negro com capacidade intelectual como qualquer outro ser humano”.
A dicotomia entre a intelectualidade e o trabalho físico é vista como princípio que coloca em xeque a presença de pessoas negras em cargos de liderança no esporte. A posição de treinador de futebol é uma delas, assim como a de dirigentes. Wesley Assis, atualmente à frente do comando técnico do Tupi, ressalta que existem poucos treinadores negros no Brasil. “Reflexo da questão estrutural do nosso país em relação a oportunidade para negros em educação”, analisa. Como principal desafio, ele reconhece que, “mesmo se preparando, vamos continuar correndo o risco de ter pessoas desacreditando do nosso trabalho e da nossa capacidade devido à questão racial”, constata.
Se a concorrência é desigual, como pontuou Ricardo, Assis comenta que a saída para profissionais negros tentarem escapar dos olhares de desconfiança – fruto de um racismo que, para ele, é velado -, é “sempre matar um ou dois leões por dia”. Ele conta que, verbalmente, nunca passou por uma situação explícita de racismo dentro do esporte, apesar de escutar expressões racistas, infelizmente comuns no meio.
“Goleiro preto não vinga, não”
O racismo contra goleiros assombra muitos atletas que escolhem a posição. O estereótipo foi criado na época de Barbosa, arqueiro titular da Seleção Brasileira na final da Copa de 1950, quando falhou no Maracanã contra o Uruguai. O suficiente para condená-lo como culpado pela derrota, aprisionar e, até mesmo, atrapalhar a carreira de tantos que sonharam em defender a meta de clubes Brasil afora.
Atualmente treinador de goleiros das categorias de base do Atlético Goianiense, Negrette, que já trabalhou nas comissões do Tupi e do Tupynambás, teve a formação como arqueiro em Juiz de Fora, mas não chegou a jogar profissionalmente. “Quando eu era atleta dos juniores, um treinador que foi racista comigo. Tinha acabado o treino, e ele falou: ‘goleiro preto não vinga, não’. Na minha cara, em frente ao grupo. Fiquei muito chateado. Tinha 18 anos e nunca imaginava que iria passar por isso”, lamenta. Diretamente, o que aconteceu com Barbosa também marcou a vida de Negrette, que sempre ouvia “piadas” sobre o injustiçado camisa 1 da seleção de 1950. “O Brasil ficou muitos anos sem ter goleiros negros por conta desse preconceito”.
O estereótipo também atinge o craque brasileiro que veste a camisa 20 do Real Madrid e tem sido vítima do racismo destilado por muitos espanhóis, já há algum tempo. A jornalista Virtudes Sanchez analisa que a imprensa contribuiu para fomentar esse ódio a Vinicius. “Criaram um perfil do atleta que não é correspondente a ele. O apresentam como polêmico, violento, exagerado, provador. Primeiro foram as danças, depois os cartões. Vinicius sempre é o responsável, sempre é o culpado e sempre lhe dizem que deve abaixar a cabeça: os árbitros, os meios de comunicação, La Liga, a Espanha, inclusive uma parte dos madridistas dizem que Vinícius tem que mudar sua atitude. Vinicius enfrenta as pessoas, tem responsabilidade e quer que se identifique os racistas, que os expulse de campo, isso as pessoas não entendem na Espanha”. Contudo, como almejar e elaborar a superação do racismo no esporte e, sobretudo, na sociedade? Quais as alternativas?
O “sair da grande noite”
A expressão dá título à uma obra do filósofo camaronês Achille Mbembe que, em seu livro, ensaia sobre um continente africano descolonizado. A “grande noite” já havia sido teorizada pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon, justamente para falar dos sujeitos impactados pela colonização. De forma a almejar a superação do racismo como um passo de evolução social, Ricardo acredita que a educação é fundamental.
“O meu pensamento é que através da educação a gente não muda só esse preconceito racial, a gente muda também a visão cultural do país em tantos outros aspectos. Acho que é onde a gente peca, entra no debate com pessoas com muita falta de conhecimento e somente pelo achismo. Acaba que não desenvolvemos nenhum tipo de ação para a resolução disso”, pontua.
Assis, que se mostra atuante e atento ao debate sobre as relações étnico-raciais também aponta a educação e a conscientização social como forma de superar o racismo. “O tema tem que ser mais abordado nas escolas e faculdades, para as pessoas terem a consciência de escutar os profissionais negros, ver o que eles estão sentindo na pele. Através dessa discussão, gerar uma reflexão e tentar uma luz no final do túnel para a mudança. Acredito muito na educação, na discussão do tema. Quem discute o tema não está se vitimizando, precisamos falar sobre isso. Peço às pessoas que leiam, discutam sobre, para que tenham o conhecimento de quão ruim é para quem passa”, completa.
Inclusive, é acreditando no potencial transformador da educação que Vinicius Júnior mantém um instituto que carrega seu nome no Brasil, com o intuito de apoiar a autonomia do desenvolvimento educacional em três pilares: educação como base, tecnologia como ferramenta e esporte como linguagem, atuando diretamente em parcerias com escolas públicas em prol da melhora no ensino. A educação salva e, assim, “a base vem forte”.