Dificuldade no acesso à laqueadura volta a ser debatida

Em Juiz de Fora, entre 2019 e 2021, foram registradas 63 queixas de usuárias do SUS com dificuldade de realizar o procedimento


Por Elisabetta Mazocoli, estagiária sob supervisão de Rafaela Carvalho

27/03/2022 às 07h00

Mais de 60 reclamações chegaram à ouvidoria do SUS de Juiz de Fora, entre 2019 e 2021, envolvendo a dificuldade de realização da cirurgia de laqueadura, conforme dados da Prefeitura de Juiz de Fora. As principais as ocorrências estão relacionadas aos critérios exigidos para realização da cirurgia, que hoje estão regulamentados pela Lei federal 9.263/1996. As queixas revelam os problemas que ainda envolvem o direito reprodutivo das mulheres face à legislação brasileira sobre esterilização voluntária e as discussões sobre a autonomia do corpo.

Ainda controverso, o tema voltou a ser a ser discutido no Congresso Nacional, no último dia 8 de março, quando a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que traz uma série de alterações na legislação, para facilitar o acesso à cirurgia de laqueadura e a outros métodos contraceptivos. Uma das mudanças mais significativas foi a retirada da exigência do consentimento do marido, para que a esterilização seja autorizada. A proposta também traz a proibição da recusa injustificada de fornecimento de métodos contraceptivos por parte dos profissionais, serviços e empresas de saúde. Com o assunto em debate, a Tribuna ouviu mulheres que tentaram fazer a cirurgia, mas foram impedidas pelas exigências legais ou por falta de cumprimento dos direitos que já estavam previstos.

Laqueadura Renata fernando priamo 1
“Eu era muito nova, mas já estava com três filhos. Cada um sabe do seu limite”, argumenta Renata Marinho Alexandre, ao relembrar as dificuldades enfrentadas para conseguir o procedimento pelo SUS (Foto: Fernando Priamo)

A empregada doméstica Renata Marinho Alexandre, 32 anos, conta que, com 21, engravidou do terceiro filho. “Fiquei em choque, porque tinha acabado de começar a trabalhar, era meu primeiro emprego com carteira assinada. Estava aproveitando que os meus meninos estavam crescendo.” Desde que descobriu a nova gravidez, decidiu que não queria ter outros filhos. A partir desse momento, Renata começou a realizar consultas no SUS, manifestando a vontade de fazer a cirurgia, já que, até aquele momento, não tinha conseguido se adaptar totalmente com nenhum método contraceptivo.

Mesmo atendendo aos requisitos da lei, que autoriza a esterilização voluntária em mulheres que já tiverem dois filhos, os médicos do SUS não quiseram fazer a cirurgia devido à idade da paciente. A alternativa para Renata foi encontrar um médico particular que realizasse o procedimento. Mesmo assim, ela conta que precisou convencer o médico sobre a sua vontade, porque escutava nas consultas coisas como: “Você é nova, pode arrumar outro marido que queira filhos e você não vai poder dar”. Renata lembra que esse processo de ida aos consultórios foi muito doloroso, porque sentia que sua vontade, para decidir sobre seu corpo não era considerada. “Eu era muito nova, mas já estava com três filhos. Cada um sabe do seu limite”, desabafa.

A professora Luanda Santos, 45, também relata situação similar, que viveu aos 30 anos, quando solicitou pela primeira vez o procedimento. “Quando tive minha segunda filha, foi uma gravidez bastante complicada, porque tive toxoplasmose na gestação. Nessa gestação, o bebê viveu só 20 dias. Logo na cesariana, requisitei a laqueadura, mas o plano não cobriu.” Quando a criança não sobreviveu, Luanda ainda escutou da médica que a atendeu: “Viu? Se você tivesse feito a laqueadura, não iria poder ter mais”. Ela considera a atitude da profissional uma grande agressão, principalmente pelo momento que estava vivendo. “Já estava segura sobre a decisão. A gente é violentada de diversas formas. Eu já estava vivendo o luto, e ainda tive que ouvir isso. ”

Quando Luanda tentou realizar a laqueadura pela segunda vez, na terceira gravidez, com todo esse histórico de problemas na gestação, ouviu de seu plano de saúde que ela apenas conseguiria fazer a cirurgia se tivesse a autorização do marido – requisito previsto na lei vigente. Luanda conta que diziam para ela: “Seu marido tem que consentir, porque ele pode querer ter filhos”. Sobre a situação, ela critica: “Isso, apesar de eu afirmar muitas vezes que não queria ter mais filhos. É uma maternidade compulsória”. Mesmo sabendo que a exigência é legal, Luanda afirma que se sentiu agredida, uma vez que não consideravam a vontade dela.

A professora relata que todo o processo foi humilhante, sofrendo grande pressão psicológica por sempre questionarem a vontade dela, antes de autorizarem o procedimento. “Eu me senti acuada. Na entrevista, meu marido estava presente também, e falaram até sobre a possibilidade da minha filha mais velha ter algum problema e eu ter que gerar alguma criança para ser doadora”, relembra.

Dificuldade para colocar DIU

laqueadura Fernanda fernando priamo 5
“Marquei a consulta no SUS e fiquei aguardando. Chegando lá, me informaram que o médico teve um imprevisto. Disseram que iam ligar e nunca mais me ligaram”, diz Fernanda Gonellys, que já fez várias tentativas para colocar DIU, sem sucesso (Foto: Fernando Priamo)

Mas a dificuldade para conseguir métodos contraceptivos não se limita à laqueadura. A confeiteira Fernanda Gonellys, 31, tentou primeiro esse procedimento aos 27, mas novamente, mesmo tendo dois filhos, não conseguiu médico que a operasse por conta da idade. Então, ela optou pelo dispositivo intrauterino (DIU). “Marquei a consulta no SUS e fiquei aguardando. Chegando lá, me informaram que o médico teve um imprevisto e tinha desmarcado. Disseram que iam ligar e nunca mais me ligaram”, diz. Foram várias tentativas no SUS e, posteriormente, na rede particular. “No particular, me falaram até que se eu comprasse o DIU ia mais rápido. Já comprei e até hoje não consegui.”

O quadro de Fernanda é complexo, porque ela é hipertensa e toma remédios para controle de pressão diariamente, sendo que eles estão sendo administrados junto a pílula anticoncepcional. “Me sinto prejudicada por não poder tomar a decisão de não querer ter mais filhos. Fisicamente e também financeiramente, o que eu sei é que não tenho mais condição de arcar com isso”, diz. Por conta de casos como esse, o projeto de lei também inseriu no texto um prazo máximo de 30 dias para a oferta dos métodos contraceptivos.

‘Tem que ter certeza da escolha’

Procurada, a Prefeitura de Juiz de Fora afirmou, por nota, que dentre as 63 manifestações registradas sobre laqueadura, “todas foram respondidas às solicitantes”. Em entrevista à Tribuna, a supervisora do serviço da Saúde de Mulher da PJF, Andrea Dias Kingma Lanziotti, explica que, a partir do momento que a mulher manifesta o desejo de realizar o procedimento, ela é encaminhada para fazer uma avaliação. Em seguida, será direcionada a um grupo de direitos reprodutivos, recebendo orientações educativas. Depois, é levada para o setor de saúde da mulher. “Aqui, passa por esse processo de acolhimento e, em seguida, agenda o médico.”

Andrea explica que as mulheres que optarem por esse procedimento precisam entender que, dentro dos métodos contraceptivos, a esterilização é irreversível. “Ela tem que ter conhecimento dos demais métodos e certeza dessa escolha. Todas que optam por isso devem passar por um processo educativo.” Nos casos em que ocorrem problemas durante o atendimento, a supervisora orienta as pacientes a procurarem a Ouvidoria da Municipal da Saúde. Quando há ocorrências, os órgãos responsáveis devem responder às queixas e aos relatos, “orientando, explicando, colocando a questão da legislação”.

As mulheres que quiserem realizar a laqueadura devem informar que a intenção de fazer o procedimento em uma das unidade de saúde da cidade.

Moeda de troca

A advogada Michele Leal, integrante do coletivo feminista Maria Maria, considera que a permissão para as mulheres não precisarem da autorização dos maridos para fazer a laqueadura no Brasil, prevista no projeto de lei que agora será enviado ao Senado, seria uma grande conquista. Um fator que sempre deveria ser considerado é, por exemplo, quando a saúde da mulher está em jogo nessa decisão, como nos casos das entrevistas em que há complicações físicas.

Em sua área de atuação, a advogada já atendeu uma mulher que passou por uma situação em que essa autorização foi usada quase como uma moeda de troca, em uma situação em que a grávida estava com medida protetiva contra o indivíduo por agressão. “Ela estava grávida do terceiro filho. Ele contratou um advogado e foi ao hospital duas horas antes do parto, fez ela assinar uma procuração e peticionou no processo da medida, informando que tinham se reconciliado em troca da laqueadura”, relata.

Michele também explica que os métodos contraceptivos são apontados como um dos principais responsáveis pela presença feminina no mercado de trabalho. Para ela, no entanto, ainda há caminhos para serem traçados nessa luta por direitos.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.