Até quando seremos cúmplices

Por Marcos Araújo

Ficar estarrecido e duvidar da própria humanidade enquanto ser humano vivendo em sociedade é o mínimo que se pode sentir ao ver as imagens do assassinato brutal cometido contra o imigrante congolês Moïse Kabagambe em um quiosque na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O valor de R$ 200 teria sido o motivo para o que jovem, de apenas 24 anos, fosse alvo de 39 pauladas desferidas com um taco de beisebol, tendo ele permanecido imóvel a partir da 36ª investida, enquanto estava imobilizado por uma chave de perna.
Mas não foi apenas por causa de R$ 200, a morte do congolês revela como o racismo, relacionado à xenofobia, traz à tona práticas de violência inaceitáveis em um país que, nem de longe, conseguiu reparar as mazelas provocadas pelo período de escravidão e que ainda busca o status de ser uma nação civilizada.

A xenofobia que estamos tão acostumados a ver frequentemente nos noticiários internacionais encontra solo fértil no Brasil, onde a sociedade vive, de forma conivente, com a violência contra as pessoas negras. Se já não bastasse o horror contra o congolês, em meio a repercussão da morte de Moïse, Durval Teófilo Filho, um homem negro de 38 anos, foi morto a tiros pelo próprio vizinho que disse tê-lo confundido com um bandido, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Mais um exemplo, recente, de que a cor da pele serve de estopim para barbaridade.

Aqui mesmo em Juiz de Fora, a estudante Graziele Campos, de 24 anos, foi violentada psicologicamente ao se sentir invalidada como mulher preta depois de ter sido vítima de injúria racial por meio de postagens no Instagram. Ela teve sua foto usada em um montagem, na qual o agressor a chamava de “suja, cabelo duro bombril” e de “macaca, preta, pobre da favela rouba” e que “só serve pra sexo”. A jovem ficou em choque e, por meio da Justiça, teve uma medida protetiva em razão de sua situação de vulnerabilidade, já que ficou com medo de andar nas ruas e ser surpreendida pelo ofensor desconhecido.

Nossa sociedade, além de exigir justiça e punição para os agressores, precisa refletir a fim de encontrar meios para enxergar as camadas desses crimes atravessados pela lógica da escravidão. Como bem vem apontando as entidades ligadas ao movimento negro, não se tratam de casos isolados. Paulo Azarias, coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) de Juiz de Fora, em entrevista concedida a mim, lembrou que essas ações criminosas tem sido incentivadas graças a discursos de ódio que vem ganhando mais e mais adeptos. Na visão dele, a primeira questão comum que aparece nos atos racistas, no Brasil, é a desumanização da pessoa negra, que a leva à extrema fragilidade.

Para Azarias, o desejo de que os negros voltem para a África é a revelação de um processo de continuação do racismo estrutural, mas deixando claro que a vinda dos negros para o Brasil fez parte de um processo econômico e extremamente violento e nossa abolição é incompleta, uma vez que não houve compensações para os negros em mais de quatrocentos anos de trabalho escravizado.

O espancamento de Moïse até a morte é prova cabal de um ódio que ainda opera impulsos de violência contra os corpos pretos. Assistir àquelas imagens de três homens espancando o jovem amarrado até a morte nos leva de volta ao nosso passado colonial, no qual cenas de tortura e de castigos físicos eram realizados em praça pública. Até quando seremos cúmplices dessa herança que nos foi deixada pelos colonizadores?

Marcos Araújo

Marcos Araújo

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