Quando chega a hora de escrever a crônica, é bom ter alguma coisa já mais ou menos mastigada no cérebro. Alguns movimentos ajudam nesse processo de ruminação. Uma longa caminhada com o celular desligado. Aproveitar a insônia para buscar nos cantinhos da memória algum fio que, desenrolado, lhe renda um punhado de linhas. Ler textos de cronistas melhores que você. Sentar sozinho em um botequim e observar o movimento. Prestar atenção à conversa alheia na fila do supermercado. Conversar com um cachorro desconhecido no banco da praça.
Quando chega a hora de escrever a crônica, é bom saber que o tempo não se rende a lamentações e não se pode publicar um buraco em branco na página do jornal. Aberta a folha na tela luminosa, é preciso metralhar as teclas. Talvez você se levante e vá beber um copo d’água mesmo sem estar com sede. Dê um pulo no quintal para ver se a goiabeira floriu. Faça um café. Mais um café. Dê uma corrida nos sites de notícias para, num último ato de inocência e desalento, tentar buscar uma palavra luminosa que ative alguma graça no seu espírito desistente.
Quando chega a hora de escrever a crônica, todos os relógios do mundo tiquetaqueiam contra você. E você lê que o Facebook derrubou uma live do presidente da República e pensa “que absurdo” e o absurdo é que só tenham feito isso agora essa única vez e lê que outro mentiroso convicto Donald Trump banido há tempos das redes sociais vai criar sua própria rede social porque tem dinheiro e assim estapeia nossa cara nomeando-a Truth que é “verdade” em inglês e você vê que onde busca luz há apenas escuridão e enfim por um momento tira os olhos da tela.
E vira sua cabeça em direção à janela.
No telhado vizinho, pousa um gavião-carcará. E você pensa que deve haver ali, no bico curvo do falcão caipira, algo que valha dois minutinhos da esforçada atenção de seu leitor. E só então se põe a trabalhar.
Quando chega a hora