Os dias que passam em mim ou as horas que passam por mim nunca passam vazios. Sempre deixam ou ficam alguma coisa, alguma sensação, alguma falta, alguma possibilidade e desejo. Mesmo sem perceber, as marcas dos dias que se foram ficam em nós. Reconheço também que alguns dias, eu gostaria que não passassem. Que ficassem imantados no meu coração. Gostaria de retê-los. Desconfio, porém, que certamente estão na minha memória. Ou em algum lugar do meu espírito. E sinto também como é muito importante ter cumplicidade e observadores atentos ao nosso movimento de alma. A busca de nós mesmos. Na trajetória da caminhada, faço perguntas básicas sobre o sentido da vida, a preocupação com o bem-estar da coletividade, o senso de humanidade nas relações com as pessoas, começando na relação dentro de casa, com a família. O que sou e o que estou me tornando como pessoa vem dos meus pais, da minha mãe e do meu pai. Se a minha mãe queria ser professora primária, e isso, para o poder masculino paterno, não era coisa para mulher; ela fez de mim, um estudioso das letras, um amante dos livros. Me jogou de cara para a literatura, com toda falta do mundo, ampliando a minha vida e o meu espirito, esticando os meus braços no alcance de mais possibilidades e conquistas. Cresci para dentro. E multipliquei meus dedos. Já o meu pai, se não me deu presença no tamanho da minha necessidade emocional, não me poupou de amor, fidelidade e solidariedade. Fez de mim uma pessoa muito preocupada com as pessoas, com a comunidade, com a cidade. Me apresentou às pessoas e os seus interesses. Me mostrou as diferenças existentes nelas, nos países e no mundo. Me fez ver as relações de interesses em jogo, o jogo da política. Ou melhor, o jogo dos políticos (de alguns). Sonhava sim, com um mundo mais justo, bem mais justo. Não suportava as injustiças. Seu pensamento radical discordante sobre a fala de algum agente público, extrapolava-se na manifestação de sua raiva diante de tamanha reprovação pessoal.
Com a minha mãe e o meu pai presentes em mim fui para o mundo. Abri as páginas de muitos livros para a leitura da minha alma. O ingresso na Faculdade de Serviço Social possibilitou-me buscar outros crescimentos e outros espaços na sociedade, próximo à entrada no mercado de trabalho. A intervenção junto às pessoas idosas me permitiu resgatar e continuar o trabalho de gratidão, respeito e amor a meus pais. Nas pessoas idosas, encontrei a possibilidade de me tornar uma pessoa melhor. Ter a oportunidade de comemorar o renascimento do menino que saiu “pitico” de Porciúncula/RJ, que adorava pescar lambari com o seu pai. E jogar bola no Clube Caça e Pesca. Se esse menino – que eu sou – resiste, vive e está mais do que nunca aceso dentro de mim, eu tenho um sonho. Como fazia meu pai que na noite de Natal, que comprava brinquedos, com uns “ticos-ticos” contadinhos, na loja do seu Cristóvão. E a molecada que estava na praça, em fila, cada um tinha o seu presente e levava para casa. Essa imagem da adolescência retorna em mim o sonho de continuar buscando e trabalhando por uma cidade para todos e para todas. Eu sonho principalmente com a emancipação humana de todas as pessoas, principalmente as que estão na fila da loja do “seu Cristóvão” à espera da sua vez. Na dignidade de dias melhores e de dias de menos opressão e de dificuldade para se manterem de pé, com respeito e desejo de um bom futuro. Eu sonho e luto, como muitos, com um sistema social- político-econômico, (como meu pai desejava), mais justo, mais solidário. Menos pobreza e mais educação e vacina para todos e para todas.
Esse legado pela justiça social que o meu pai me deixou vou levar e continuarei levando para frente. Em honra de sua memória e do meu amor por ele. Acredito na ação coletiva de transformação social. Estamos cheios de exemplos de pessoas, profissionais, instituições que fazem a diferença na vida de muitas pessoas, iguais a nós, e não precisamos de ir muito longe, não. Por aqui mesmo, identificamos muitas realidades que estão sendo transformadas. A história da humanidade não está fechada, encerrada, finalizada. Podemos fazer uma outra forma de existir. Ainda dá tempo.