O cartaz escrito à mão na virada da esquina me assaltou: “hoje frango com quiabo arroz feijão angu salada”. Salivei e passei direto, tinha um compromisso desagradável com a cadeira do dentista – embora o dentista, o Chico, seja ele mesmo um boa praça. Mas a cadeira se sobrepõe.
No retorno, uma passada na loja do Tuka para deixar um livro pro Lução, um artista de verdade. Impossível sair de mãos abanando das muralhas de malha onde se encastela o cabeludo roqueiro. Entrei com livro, saí com camisa cinza do Metallica.
Olhei a hora e já era possível almoçar. “hoje frango com quiabo arroz feijão angu salada”. Um homem não deve se furtar a chance de comer comida de verdade, e um cronista não pode perder a oportunidade de roubar aos outros alguma história. Minhas ideias são todas dos outros. Sou o larápio da mesa ao lado. O gatuno atrás da porta. Pivete menor entre todos os punguistas de palavras.
Adentrei o bar duplamente faminto: do PF e do imponderável que pousa na vida presencial, como se convencionou dizer. Pois há outra, remota, on-line, virtual, sem cheiros ou sabores, sem veias aparentes, que não dá sangue nem enche barriga. Fiz o pedido e aprumei as orelhas, papel pega-moscas à espera de causos voadores.
Ao fundo do botequim, emoldurado por caixas de Antarctica, um casal de velhos dividia uma Coca-Cola. Do lado de fora, três homens fumavam e bebiam cerveja, abrindo o apetite. Na mesa ao lado, um negro muito forte também aguardava seu pedido. Atrás do balcão, uma criança ouvia ordens da mãe que preparava os pratos no segundo andar.
Todos pareciam se conhecer. E a conversa ao longo de meia hora não saiu do cerco. “Olha o que tá no Insta da fulana.” “Viu o que beltrano postou no Face?” “Cadê o menino pra entregar a marmita? Tá jogando joguinho no computador, aposto.” “Só fica jogando o dia inteiro.” “Vai ficar com problema nas vistas.” “Agora eu só escuto jogo no celular. Meu filho ensinou.” “Recebi no zap, olha aqui.”
Fui devorando o frango com quiabo arroz feijão angu salada hoje não e a prosa de tom cibernético se derramava pelo ambiente. Onde um mágico aposentado fazendo truques com moedas? Onde um músico cego? Uma ex-rainha de bateria? Um matiense que conheceu Juscelino? Apenas a zap, face, insta resumiram-se os almoços em botequins do centro da cidade? O que pode um pirata de existências alheias saquear em tal recinto?
Paguei minha conta, agradeci pela comida e parti, a roupa limpa, nem odor de fritura emanava da cozinha. A vida presencial contaminada da outra vida, aquela remota, on-line, virtual, sem cheiros ou sabores, sem veias aparentes, que não dá sangue nem enche barriga.
Vida presencial