Metia um tiro

Por Wendell Guiducci

Varela estava fulo da vida.
– Chifrado pelo meu melhor amigo, rapaz. Acabo de saber, que hora!
Patrícia o havia traído com Antônio Carlos, companheiro de baia na repartição, inseparável colega de copo e tira-gosto nos jogos do Fluminense, padrinho de casamento, o cúmulo do deboche.
– Tá pesado, tá pesado! – repetia o Varela no carro enquanto o motorista do Estado o conduzia de um para outro edifício. – Minha vontade é meter um tiro na cara daquele safado. Que de mulher a gente espera qualquer coisa, mas de amigo não. De amigo, não senhor! Tivesse uma arma aqui agora eu subia lá no terceiro andar e metia um tiro. Ah, se metia!
O motorista, Zé Paulo Tenebroso, que desconhecia o próprio epíteto, dado pelos demais servidores públicos em referência a seu olhar mortiço, lançou pelo retrovisor a braba:
– Mete, uai.
– Hein?
– Mete o tiro.
Varela ficou meio desconcertado. Queria mesmo dar o tiro. O sangue fervia no rubor das faces. O mais perto que estivera de uma arma foi na quermesse da Igreja de São Geraldo, atirando com espingarda de rolha pra ganhar urso pra Patrícia. Errou todas e comprou algodão-doce. Mas se tivesse um revólver ali, largava o dedo na cara do Antônio Carlos.
– Nem tenho revólver – disse de súbito, apavorado ele mesmo com a casualidade de sua fala.
– Três conto e ocê compra um trezoitão na Feira da Brasil.
– Três mil reais?
– Opa. Mole.
Ficou com a ideia na cabeça. Transferido de prédio naquela semana para treinar novatos, não teve de reencontrar Antônio Carlos, e para Patrícia só olhava de esguelha, na penumbra da noite. Saía antes de ela acordar, fazia hora na rua, demorava-se no serviço, voltava quando já estava dormindo. Evitava vê-la pois o amor doía muito, e sempre pensando: vou à feira domingo comprar arma? E depois, com a arma na mão? Onde vai ser a emboscada? Que sou ainda novo e não quero ser pego, a cadeia eu não cobiço.
Chegou o domingo e Varela não foi à feira. Não se via perguntando de banca em banca “onde eu compro um 38”? E as balas? Onde compraria? A traição queimava-lhe as entranhas, mas o plano de morte arrefecia com o correr dos dias. No calor do momento, atiraria sem titubear em Antônio Carlos. Mas agora já lhe parecia trabalhoso demais, perigoso demais.
Na segunda-feira, o primeiro a ver na repartição foi o Antônio Carlos. Espremeu entre os dedos o cafezinho. O líquido sapecou a mão. Olhou fixo na cara do amigo, que disparou do meio do corredor:
– Ô Varela! Fluzão hoje, hein! Na minha casa ou na sua?

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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