Arma foi feita para matar. Para nada diferente disso. Sabe disso quem já levou chumbo e escapou, e sabe quem disparou para “assustar”. Quem “mirou no que viu e acertou no que não viu”. Arma não foi feita para dar segurança, para defender propriedade, para impor respeito, para afirmar macheza. Arma foi feita para matar.
Sabem disso a família de Emilly e Beatriz, meninas de 4 e 7 anos, assassinadas na porta de casa em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, na última sexta-feira. O horror do assassínio de crianças _ foram 12 no estado vizinho só em 2020 _ por balas perdidas suscita um monte de questões, como o genocídio de pessoas pretas, o despreparo das forças de segurança pública e a normalização, por parte da imprensa, das mortes violentas em comunidades pobres (nos três maiores jornais do país, o episódio ganhou uma nota ao pé da primeira página).
São todas questões muitíssimo relevantes e que não devem ser adiadas. Mas é preciso pensar na arma. Na banalização do tiro. Retomar a pauta do desarmamento. Inclusive o desarmamento da polícia. É discussão urgente, na qual regredimos anos sob Jair Bolsonaro, adorador convicto de torturadores e fetichista de pistola automática, como seus filhos.
“Se há mais armas, há mais crimes”, ensina Lawrence Sherman, especialista em criminologia da Universidade de Cambridge, em entrevista à BBC.
Não se trata, de uma hora para outra, de tirar o acesso das polícias às armas. O foco inicial do desarmamento, não precisa ser de Cambridge para deduzir, deve ser o crime. Parar o despejo de armas nas ruas, cortar do bandido o acesso ao armamento. Bandido que, aliás, municia-se frequentemente de armas de uso exclusivo do Estado, granadas, metralhadoras, fuzis, pistolas, graças a esquemas dentro de quartéis e delegacias. Não precisamos ir longe: lembremo-nos do inquérito que revelou o desvio de armas dentro do 4º Depósito de Suprimento do Exército, no Bairro Barbosa Lage, aqui na pacífica Juiz de Fora, entre 2010 e 2012.
Paralelamente ao criminoso, é preciso desarmar o homem comum, que não tem prática nem necessidade de carregar trabuco por aí _ ou senão, pra quê polícia? Novamente, lembremos com pesar da pacífica Juiz de Fora, cenário de uma tragédia ocorrida há um ano. Na oportunidade, a professora Fabiana Filipino Coelho foi morta pela bala disparada por um cidadão de bem, policial reformado que achou boa ideia atirar para deter um ladrão adolescente na Rua Marechal Deodoro na hora do almoço.
O filho de Fabiana completou 6 anos em 21 de novembro. Exatamente um ano depois do enterro da mãe.
O pai de Emilly, ajudante de pedreiro, cimentou o túmulo da própria filha em 5 de dezembro, um dia depois de perdê-la para sempre.
Vivemos a normalização da morte de crianças por balas perdidas. A normalização da morte de professoras por balas perdidas. A normalização do espocar de disparos de pistolas e fuzis como se fogos de artifício fossem. Já não acordamos horrorizados. Aguardamos docilmente que a próxima bala perdida encontre seu caminho. Pois toda bala encontra: muro ou cabeça, tronco de árvore ou tronco de gente, toda bala perdida encontra seu caminho.
A banalização do tiro