Centenário de Frederico Bracher Júnior: Um convite para conhecer a obra do pintor e músico das belezas
Em nome do belo: Autor de importantes registros de Juiz de Fora, cidade onde viveu entre os anos 1940 e 1950, Frederico Bracher Júnior, morto no auge da carreira, em 1984, aos 64 anos, retorna à cena no ano de seu centenário
Naquele ateliê agigantado tinha gente experiente, com tintas caras e pincéis exuberantes. Uma garotinha de 11 anos chegou carregando na bagagem materiais baratos e o hábito de desenhar compulsivamente. Frederico Bracher Júnior acolheu a nova aluna, Cláudia Lambert, com o mesmo entusiasmo com que recebia os demais. Mas a menina se envergonhou com a própria maletinha e ensaiou desistir das aulas de pintura. O pai não tinha condições de comprar tintas importadas. “O material não faz a pintura, o artista é que faz a obra”, ensinou o mestre, pegando uma vassoura no canto de casa. Frederico cortou um chumaço da piaçava, amarrou num cabo de madeira, arranjou um pedaço de eucatex, tomou a palheta de Cláudia e começou a pintar. “Ele pintou uma belíssima paisagem, como uma estrada de uma fazenda com um ipê amarelo. Uma pintura impressionista”, conta a aluna, hoje aos 67 anos e uma das mais prestigiadas ilustradoras científicas de Belo Horizonte. Anos depois, quando Frederico já havia se despedido, numa visita a uma amiga, Cláudia resgatou a cena da infância: estava lá, pendurado na parede, o quadro do professor.
Àquela altura, na década de 1960, Frederico Bracher Júnior já era um conhecido pintor em Belo Horizonte, cidade para onde se mudou aos 7 anos. Era também um respeitado e disputado professor. Um musicista e luthier dedicado, ainda. Um militante pela classe artística. Um romântico idealista. Frederico era um intelectual, que saiu de cena no auge de sua carreira, em 1984, vitimado por um fulminante infarto. No ano de seu centenário, ganha a ampla galeria do ambiente virtual numa conta aberta em seu nome no Instagram pela neta Camila Bracher, que conviveu com o avô por apenas dois anos. O que tem na memória é fruto das histórias que ouviu e do legado tão grande quanto ainda pouco explorado e discutido de um artista que sensivelmente retratou a Juiz de Fora da primeira metade do século XX.
Na coleção do Museu Mariano Procópio estão dois de seus registros da cidade hoje inexistente: numa perspectiva da Rua Halfeld, “Fórum antigo” retrata o imóvel onde hoje está a Câmara Municipal, e “Museu Mariano Procópio” evidencia o caminho que leva ao prédio histórico, sem que o casarão erguido por Alfredo Lage adentre a cena. “Rua Marechal Deodoro”, do acervo da família, observa parte do gramado lateral da Igreja São Sebastião e o casarão da esquina, com o Morro do Imperador ao fundo. Em todos, destaca-se a luz precisa e romântica, o domínio da técnica que o pintor nunca abandonou. “Costumo falar que ele foi nosso Leonardo Da Vinci”, elogia a aluna Cláudia Lambert. “Ele era requintado na pincelada, tinha conhecimento. O acadêmico é a base de tudo, e quem tem isso é capaz de qualquer coisa. É o conhecimento que dá a liberdade de criar. Ele era acadêmico e não abria mão.”
Mestre: defensor da observação e da repetição
Nas lembranças da primogênita Amarilis Bracher, o pai colocava os objetos numa mesa de trabalho, ajeitava a iluminação que desejava, armava o cavalete e começa a pintar. “Talvez tenha sido a forma de expressão que mais gostava. Os críticos diziam que se uma fruta olhasse ficaria até com água na boca”, recorda-se a ilustradora botânica e zoológica de 71 anos, trazendo à memória as cenas do pai no ateliê que ficava num anexo da casa. “Ele passava algumas horas do dia lá. Em geral dois dias da semana ele tinha inteiro reservado para as aulas”, conta. Frederico oferecia noções de perspectiva, muito desenho de natureza e incentivava a observação. “Observação e percepção: ele chamava muita atenção para isso”, diz Cláudia Lambert, hoje ilustradora científica e professora da Escola Guignard, onde repete a indicação do mestre.
Não acreditava na inspiração como fonte única do trabalho artístico. Para Frederico Bracher Júnior, “a repetição é o caminho da sabedoria”. E aos alunos sugeria pintar a mesma cena uma, duas, três, até dez vezes. “Ele falava muito que para ter um resultado de que goste, tem que haver um trabalho árduo. Todo período de estudo e observação culmina em trabalhos bons. Não acontece de repente. Exige lastro”, pontua a filha Amarilis sobre um homem que era prova do próprio discurso. “Quando jovem, ele pintava muito, e qualquer papel era tela para ele. Ele estava sempre se exercitando.” E observar, dizia, era parte. “Quem não sabe, olha muito e vê pouco. Quem já está com o olhar treinado, dá uma olhada e vê tudo o que precisa.”
No cálculo da família, o primeiro Bracher a ganhar reconhecimento nacional e internacional produziu, em seus quase 50 anos de carreira cerca de 26 mil obras, realizou 62 exposições individuais, além de oito individuais e 26 coletivas póstumas, algumas delas em Juiz de Fora. “Os trabalhos estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo, muitos painéis em igrejas, cidades e praças, esculturas. Nós temos muita coisa em casa, também. No próprio Castelinho dos Bracher tem alguns trabalhos”, aponta a neta Camila Bracher, 38 anos, referindo-se ao casarão na Rua Antônio Dias onde morou o irmão de Frederico, Waldemar, e os sobrinhos Carlos, Celina, Décio e Nívea. Onde, também, encontrou seu grande amor.
Juiz de Fora: a raiz de um amor
Violinista, o pai de Frederico, de quem herdou o nome e o interesse pelas artes, integrava uma pequena orquestra, cujos ensaios aconteciam em sua casa, sempre aos domingos. Também tocava em exibições de cinema mudo. O filho, nascido em 1920, observava o pai, aprendia e, já aos 15 anos, fez sua estreia. Um ano depois, construiu seu primeiro violino. Aos 17 recebeu o segundo lugar no prestigiado Salão Mineiro. No ano seguinte logrou o primeiro lugar e passou a atuar profissionalmente como pintor, sem deixar de lado a música. No curto tempo em que viveu em Montes Claros, trabalhou com cenografia para teatro e criou sua primeira escola de artes. Em turnê com sua companhia teatral, Frederico viajou para se apresentar no Cine-Theatro Central de Juiz de Fora, cidade onde vivia o irmão, que lhe apresentou a vizinha Lélia Lenz. Apaixonaram-se.
Adolescente, Frederico fazia planos de se mudar para perto da amada quando foi surpreendido pelo início da Segunda Guerra Mundial, para a qual foi convocado. De 1941 a 1945, ele esteve de plantão no batalhão em Belo Horizonte, aguardando a viagem que saiu justamente quando a batalha terminou. Não lutou e Lélia esperou. Em 1946, o casal subiu ao altar. Em Juiz de Fora, Frederico inaugurou sua segunda escola de artes, no mesmo endereço onde anos depois foi aberta a lendária Galeria de Artes Celina. No mesmo período, o inquieto artista ajudou a erguer a Sociedade Filarmônica de Juiz de Fora. Mas Lélia era asmática, e a umidade da cidade, segundo seus médicos, não lhe fazia bem. Foi então que, em 1953, o casal e suas duas filhas fizeram as malas.
Arte: razão, ética e estética
Na capital mineira nasceram outros dois filhos de Lélia e Frederico, que já tinham Amarilis e Alcione: Alexandre e Amiriam. Nasceu, também, outra face do artista engajado. Convidado pelo então governador Juscelino Kubitschek, assumiu a Secretaria de Cultura e passou a viajar por entre as montanhas de uma Minas Gerais que tão bem soube retratar. Enquanto isso, continuou a ensinar e a produzir. “Ele acordava artista e ia dormir artista, não era fragmentado. Estava o tempo inteiro fazendo arte e tinha várias habilidades. O ateliê era o santuário onde produzia e também um grande laboratório. Ele tinha algo de inventor”, observa a neta Camila Bracher. Frederico fabricava as próprias telas, testava exaustivamente as tintas, criava técnicas novas e solventes, além dos complexos violinos. Ao morrer, o artista trabalhava na construção de um instrumento que dizia ser o melhor de sua vida, com uma madeira capaz de produzir uma sonoridade excepcional.
“Já no final da vida fez exposições muito importantes. Ele foi um dos primeiros brasileiros a expor em Tóquio, expôs no Masp, fez turnês no estado e no país, mas no auge, faleceu”, conta Camila, que há dois anos vive em Madri, onde trabalha com relações internacionais e cursa o doutorado. Em Belo Horizonte ainda vive grande parte da família, incluindo a avó Lélia, hoje com 96 anos. Dos quatro filhos do casal, todos se dedicam às artes de alguma forma. Entre os seis netos, Gustavo, irmão de Camila, vive de sua música, uma prima é restauradora, e outra, artesã. “Todos nós crescemos num ambiente diferente e levamos para nossas profissões essa capacidade de contemplação, a criatividade e o idealismo”, defende Camila, citando, ainda, os dois bisnetos de Frederico e Lélia.
Os Bracher desejavam marcar o centenário de Frederico – o mais novo de oito irmãos, alguns deles artistas também, incluindo a atriz Elvira Bracher e a cantora e pianista Eugênia Bracher – com um livro ou uma exposição. Não deu. O tempo passou e, quando 16 de janeiro deu início às comemorações pelo primeiro século do multiartista, a neta Camila recorreu às redes sociais para celebrar a obra do avô. Pediu aos parentes que enviassem fotos e histórias de um artista cuja obra ainda está muito longe de ser esgotada. “Ele merece mais uma individual póstuma, porque dele surgiram vários outros artistas e muita gente precisa conhecer o trabalho dele”, sugere Camila.