O Brasil teve seu primeiro fim de semana de futebol desde o início da pandemia de coronavírus. Com jogos de Botafogo, Vasco e Fluminense, três dos maiores pavilhões do país, o futebol voltou.
Envergonhado de si mesmo, mas voltou.
Aliás, voltara antes, quando o Flamengo, numa noite melancólica, ofuscado pela prisão de Fabrício Queiroz e a demissão de Abraham Weintraub, puxou a canhestra fila.
A despeito das desastrosas defesas e das inflamadas críticas, o futebol voltou.
Há quem o considere essencial. Entre todos os esportes, o que faz do futebol o maior, o mais passional, o mais popular do mundo? Tenho para mim, ludopédico leitor, e vai aí uma confidência, que é o fato de ser jogado com os pés.
O futebol subverte a lógica do trabalho.
Está associado às manhãs e tardes de domingo, no terrão ou em frente à televisão; às noites de quarta, no tapetão ou no botequim. É, para quem não o pratica, sinônimo de descanso, um sentimento, um estado de espírito que subjaz à barulhenta paixão.
Obviamente que hoje trabalha-se muito no futebol. A ideia do “faz o que amas e não trabalharás um só dia na vida” já não lhe cabe facilmente. Craques pinguços, boêmios e tabagistas do passado dificilmente chegariam ao profissionalismo num esporte que hoje cria máquinas quase perfeitas como Cristiano Ronaldo. Dá trabalho demais.
Todavia, os pés.
Ser jogado com os pés é o que faz o esporte de Leônidas da Silva subversivo. O que nos faz inadvertidamente associá-lo ao ócio.
Não dizem os evolucionistas que foi o desenvolvimento dos polegares que nos permitiu criar e manusear instrumentos? Pois bem. E qual a função última dos instrumentos no desenvolvimento das sociedades? A execução do trabalho. A produção. A geração de riquezas.
A mão é sinônimo de trabalho.
Não é preciso mão para jogar bola, caro leitor.
Exceto para Maradona, mas esse aí não apenas jogava bola, era também prestidigitador.
Os goleiros sim, precisam usar as mãos, mas não à toa são os únicos que se vestem de forma diferente de todo o escrete.
Não se opera um torno mecânico com os pés, nem se arranca um dente, nem se pinta uma geladeira – mas um quadro, sim! -; não se capina um cafezal, não se monta uma turbina de avião, não se usa uma serra de mármore com os pés.
Mas a bola não requer polegar. Oferece-se ao peito do pé, à chapa, à bicuda, à trivela, ao calcanhar do Doutor Sócrates. Aceita canelada, a chaleira de Zico, a chapelaria inteira de Ronaldinho Gaúcho e – que me perdoe Gordon Banks – o escorpião de Higuita:
a mais espetacular defesa de um goleiro na história do futebol foi feita com os pés.