Questões pandêmicas


Por Isabella Gonçalves, Jornalista e doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior (Portugal)

29/03/2020 às 06h37

Em tempos de quarentena, parece que nos tornamos menos humanos ou, quem sabe, em uma outra perspectiva, até mais humanos, por nos vermos cercados de subjetividade. Os sentimentos adormecidos se tornam tão emergentes e fortalecidos que, de repente, não conseguimos lidar com tal emaranhado. Na ponta do iceberg, o medo e o pânico. Estes últimos, em doses corretas, salvam vidas. No exagero, entretanto, há de se chegar ao inesperado e ao incontrolável. A verdade é que, em tempos de pandemia, o controle já não é mais conhecido. E a falta dele é o pesadelo materializado de ansiosos e governantes. Tal distopiado descontrole jamais foi preconizado por escritores distópicos, tais como Aldous Huxley, George Orwell e Margaret Atwood. A distopia, na realidade, sempre foi o excesso do controle. E quando falta a sensação do elemento?

Suscetíveis às mais bruscas emoções, nos vemos, de repente, em uma típica cena que explora o estado de natureza de Hobbes. Pandemias podem trazer o pior e o melhor nos seres humanos. E tal como Kant argumentava, somos seres detentores do conhecimento moral, justamente por nossas capacidades racionais. Entretanto nem o filósofo estava certo de que ações morais seriam tomadas com base em tal conhecimento. Poderíamos facilmente ignorar tais constatações. Arendt, seguindo essa perspectiva, argumentaria que a maldade é, na realidade, banal, justamente por poder ser ação das pessoas mais ordinárias, na busca dos seus próprios objetivos.

E, caso precisássemos listar exemplos, poderíamos pensar logo nos norte-americanos que tentaram vender máscaras e álcool a preços exorbitantes. Mas nem mesmo o neoliberalismo imperou, meus caros. Em terras de mão invisível, em meio à crise de saúde pública, não houve lei da oferta e da procura. Tampouco respeito à propriedade privada. Adam Smith e os austríacos se revirariam no túmulo.
Novamente, percebemos que modelos teóricos não bastam para abordar os tempos vividos. Em crise, meu amigo, o que segura é intervenção.

E dá-lhe injeção de dinheiro para não colapsar a economia. É o Plano Marshall todo de novo. E a prova de que o liberalismo não tarda, mas sempre falha. Pode vir mascarado de neo, de pós, de pós-pós-liberalismo. Dê o nome que for. Ele vai falhar. E em crises de saúde como essas, o que segura é o estado e a informação. Tente vender estado mínimo, tente enfraquecer as instituições e a imprensa. Sem tudo isso, é crise, é caos.

Pandemias parecem se tornar o laboratório perfeito dos filósofos. O que diriam os clássicos da história da filosofia se pudessem estar presentes hoje? Foucault ficaria afoito, especialmente ao abordar o biopoder, em uma sociedade de vigilância, a partir de estados que regulam os corpos, em prol da saúde pública. Mas deixemos de lado tais constatações teóricas e nos prendamos à excepcionalidade de uma época. Regime de exceção. Momento histórico. São raros os períodos que podemos vivenciar e dizer, com certeza: sou testemunha. Vivenciei. Na realidade, no passado, poderiam até ser raros. Nos anos 2000, parece não haver ano sem acontecimento. Dois mil e vinte começou com força total. E ainda estamos nos 25%.

O consenso, talvez, dos acadêmicos e estudiosos, acerca dos tempos pandêmicos é da quebra, da ruptura. O que haverá de ser a humanidade depois disso tudo? O que haverá de ser o capitalismo, a globalização, as democracias, as formas de consumo, as relações sociais, os fluxos informacionais? Restam mais perguntas do que respostas. Mas o que importa é escrever, porque momentos como esses não podem nem devem passar em branco.

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