Coronavírus, solidariedade e Estado
Uma onda de terror inesperado invade o globo. Mais ênfase em alguns locais, algo já esperado num mundo segregado. Vidas equivalem a ações na bolsa, não valor. Mas uma onda geral que se espalha de forma quase igual, não fosse a desigualdade social, pode fazer algo novo brotar?
Não, não pensem que a ideia aqui é romantizar a pandemia e suas possibilidades de solidariedade, que alcançam o máximo que a retina conserva.
Falo de outra semente, diriam uma erva daninha. Ainda bem que os olhos atentos já perceberam as PANCs. Falo da semente da indignação, regada do perceber de um olhar desviado há tempos do Brasil real.
Não, talvez, por um “boom” de solidariedade feito um vírus universal, mas da percepção que viver em comunidade inclui os que estão à margem. A linha divisória invisível não impede o vírus. Ele se espreita nas costas dos subalternizados, que varrem o seu chão, lavam sua louça, montam seu carro, carregam seu lixo, embrulham suas compras, sobem ladeiras de bike numa cidade não pensada para eles. O álcool aumentou de preço, sumiu, virou estoque de quem pode comprar. E estão levando a comida junto, não sem antes de garantir que possa se limpar de tanta comilança.
E não é que a sociedade que tem plano de saúde percebeu que o SUS tá sucateado? Que, assim como uma outra série de serviços públicos essenciais, estão sob a égide da PEC da morte, que congela os investimentos públicos em 20 anos, aprovada por iniciativa de Temer após golpe.
Eis que brota então a percepção de que estamos sob o comando de despreparados, para dizer o mínimo! Panelas voltam às janelas, como se elas fossem o alpendre da organização popular e da democracia. Não nego, faço meus barulhos, mas vejam bem: de quantas panelas faremos um país? O sistema vai colapsar, pessoas vão morrer, pessoas queridas, conhecidas e desconhecidas, que habitam sarjetas impercebidas nas caminhadas de viver.
Não estamos jogando. Mas pode haver a virada. A solidariedade é uma arma bem mais eficaz que um 38. Porém é o Poder Público que tem o dever de tomar a frente nesse pacto social (outro, né, minha gente). Chega de pagar juros de dívidas já pagas, isenção de impostos, renda mínima, garantia de empregos. Acordo com os governos estaduais. São vidas em jogo!
Só que, para isso, cidadão de bem, é necessário reconhecer a inépcia do governo central. A tragédia está no horizonte. Caminharemos até ela ou seremos capazes de juntos organizarmos trincheiras sanitárias de solidariedade, organizadas pelo Poder Público e alimentadas pelo que há de melhor nos seres humanos? Eu aposto minha luta nisso. E, cara e caro leitor, deviam apostar também, se não for pelo próximo, por si mesmo. Diminuir o efeito do caos não está no que você compartilha com o vizinho. Por favor, continuem a fazê-lo, mas pela cobrança da seriedade de quem está no comando da nação.
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