Simples assim


Por Linda Olívia de Paula Lopes Velloso, professora aposentada da UFJF

20/11/2019 às 06h58

O estudo da História tem um aspecto para seus estudiosos que é o de nunca se esgotar, nunca ser completo, nunca ser definitivo. Há sempre a possibilidade de ele ser alterado, modificado ou reformulado.

Mesmo depois de séculos, fatos que determinaram uma realidade podem ser renomeados, permitindo correções de rumo que alterarão toda a organização anterior e dando origem ao que se denomina transformação da realidade. Isso é realmente fascinante.

A realidade brasileira vive um momento de grande negatividade política, econômica e social que nenhum partido político (PSDB – PT – PMDB – DEM – PSL – PTB – PP – etc.) nem forma de fazer política (nova – velha – boa – má) nem nenhuma reforma (da previdência, trabalhista, administrativa, fiscal, etc.) conseguirá resolver se não se atacar a questão crucial que é da desigualdade social. Essa questão se implantou no Brasil desde que os portugueses aqui chegaram e montaram um ordenamento político, econômico e social cujo arcabouço se sustentava em dois pilares que continham a estrutura social constituída pelos: 1° elementos de “primeira classe”, formada pelos homens brancos proprietários de terras e de escravos, e os que compõem o seu entorno; 2° os elementos de “segunda classe”, formada pelos escravos índios e negros vindos da África para atuar como mão de obra do funcionamento da ordenação montada pelos elementos da “primeira classe”.

Essa organização social desde sua origem criou uma sociedade dividida que, além de ser baseada na forma mais cruel de exploração do homem pelo seu semelhante através do trabalho escravo, ainda se legitimava por estar explorando indivíduos da “segunda classe” (os negros). Essa dicotomia explica por que os donos do poder não se preocuparam jamais em criar leis de amparo social para os negros. Eles, os negros, eram apenas instrumentos de trabalho. Só valiam enquanto produziam. Até mesmo a Lei Áurea só foi promulgada em 1888 para libertar o proprietário de escravos da obrigação de mantê-los, quando essa mão de obra tornou-se menos lucrativa. Daí não haver na lei nenhum artigo sequer relativo à assistência social devida ao negro após a alforria. Nunca se pensou no processo de inserção do negro na sociedade brasileira. Certamente esteja aí a origem da naturalização do racismo brasileiro e da insensibilidade dos brancos pelas questões da desigualdade social. A situação social do negro hoje já mudou bastante, mas sua invisibilidade continua preponderante. Embora a maioria da população, o acesso do negro continua restrito a atividades subalternas como marca da injusta divisão social. Os Joaquim Barbosa, Benedita da Silva, Nilton Santos, Ruth de Souza, Abedias Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Milton Nascimento, Glória Maria, Seu Jorge e Taís Araújo continuam como exceções que só confirmam a regra.

A inserção social do negro só se fará através da adoção de medidas protetivas e do sistema de cotas que promova a abertura das portas de instituições e repartições públicas e privadas para que eles possam ocupar os cargos e as funções até aqui em reservados exclusivamente aos brancos. Só se ombreando com os brancos com bancários, professores, vereadores, deputados, senadores, ministros, servidores do ministério público, médicos, advogados, juízes, engenheiros, arquitetos, dentistas e mesmo como clientes nas salas de espera desses profissionais é que poderemos pensar que se vai acabar com a desigualdade social.

A classe média fortalecida pela presença atuante do negro, o preconceito será atenuado e se poderá pressionar a fração ínfima das 200 famílias bilionárias detentoras da concentração de renda a partilhar com os cinco bilhões mais pobres, fazendo diminuir o abismo que existe entre dois extremos da pirâmide social.

Aí, então, se poderá pensar em reformas que poderão fazer funcionar os mecanismos governamentais. E, com os negros reabilitados como cidadãos e socialmente inseridos no contexto, se possa falar no Brasil como Estado Democrático de Direito.

É por isso que cada país tem suas datas especiais para serem comemoradas. A da consciência negra, por exemplo, nos faz refletir sobre as questões que impactam nossa realidade, dando-nos a falsa impressão de que a exclusão social do negro seja um fenômeno insuperável, quando, na verdade, ele só se mantém por ser realimentado pelo ordenamento montado pelas classes dominantes. É na verdade um programa, e não um problema. Para superá-lo, basta mudarmos a programação.
Simples assim.

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