O que fizeram da razão?


Por Bruno Carlos Medeiros, advogado e jornalista

31/10/2019 às 06h58

Das peculiaridades comportamentais que os indivíduos cultivam com mais veemência, nenhuma é tão misteriosa do que a obsessão de se patrocinar a defesa do que se desconhece, de pessoas a teorias. E não se sabem os louros que se pretende colher com pitacos ferozes sobre assuntos que exigem anos de dedicação para que sejam desvendados ou a respeito dos quais já não restam incertezas – obram impropérios até para a forma esférica do planeta.

Ainda que se admita a inata atrofia intelectual que acomete uma sociedade que titubeia em suas habilidades cognitivas mais elementares – decerto, um dos entraves ao progresso de nossas gentes -, que despreza as recompensas decorrentes do cultivo do hábito de leitura, especialmente quando assentado sobre as mais desafiadoras, temas de manifesta complexidade tornaram-se banalizados e marcados por uma clareza que leitores contumazes refutam, conscientes de seus nós e do empenho que se exige de quem se entrega ao inglório esforço de elucidá-los.

Nos dias de hoje, perdeu-se o pudor de se debater o inexplorado com pompa de especialista – mesmo quando com reconhecidos especialistas -, uma evidente manifestação do efeito descrito por Dunning e Kruger, que analisaram indivíduos que, malgrado seus nulos conhecimentos sobre uma determinada temática, confiam em suas teses a ponto de se recusar a reconhecer suas limitações – a mediocridade, afinal, não se reflete no espelho. E as redes sociais ainda nem sequer existiam.

É sintomático que apenas uma fatia dos brasileiros esteja apta a discutir, com propriedade, conceitos tão intrincados quanto comunismo, fascismo, socialismo, marxismo e outros tais, realidade que não refreou a sua elevação ao posto de símbolos de uma cisão social encetada por uma guerra ideológica cujos benefícios são coletados apenas por quem as inflama. De repente, nos vimos encurralados por ensandecidos peritos em matérias tradicionalmente restritas a universos quase obscuros. Sabe-se que o inimigo está por ali – alguém nos disse – e, assim, deve ser combatido.

É desconcertante a constatação de que as discussões políticas, que buscam desembaraçar os itinerários da democracia, tenham se convertido em duelos de provocações, em que se recorre a pressupostos cuja exuberância reside em sua “sagacidade”: vence o dono do argumento mais “endiabrado”, mesmo que a ele não pertença, ainda que não compreenda o seu significado ou quais serão os frutos de seu pretendido triunfo, antecipado pelas gargalhadas irônicas que costumam acompanhar os disparates daqueles que creem que serão recompensados pelo “extermínio” de ideologias e pessoas em relação as quais pouco sabem.

Tornou-se trivial afirmar que o ódio se apossou da delicadeza, e talvez esteja aí o motivo pelo qual falhamos, ao menos momentaneamente (nunca é tarde para se crer na insurreição da afabilidade), enquanto sociedade: quando um brasileiro se presta a militar a favor da pura destruição de seus iguais, desmoronam-se as pedras fundantes do próprio ideal democrático, quando apenas se ecoam teorias que, alicerçadas na fúria, não poderão ser debatidas. Um esforço para se viabilizar um retrocesso de sabe-se lá quantos séculos, quando a sociedade não era nada complacente com a diversidade e desconhecia a harmonia.

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